Sunday, October 30, 2011

65 - De Nova York à Beira Interior

Jean-Michel Folon - Wings
Ao voltar agora a Portugal, esperava-me logo de entrada uma constatação encorajadora, que o desejo de cultura é resiliente aos tempos de crise e que essa aspiração é transversal das capitais do mundo às terras de província no interior do país.
Mas primeiro houve a descompressão, que só pode acontecer numa passagem gradual por pontos intermédios. Deixar progressivamente para traz as discussões intermináveis dos grandes bonzos da política, da economia e das finanças, sobrevoar os problemas artificiais do Euro e a falência bem real dos Estados fantasistas, para voltar a uma aldeia com cerca de trezentos habitantes permanentes.
Em dias normais, passam uma pessoa, um carro ou um grupo de turistas de vez em quando, juntam-se uma dúzia de habitantes no Centro de Dia, quando abre o Posto Médico ou nas reuniões da Junta de Freguesia. De noite, a princípio custa a adormecer com o silêncio, quebrado apenas pelo bater tranquilizante das horas na torre do Castelo ou pelos rouxinóis que cantam nas tílias do Largo.
Trezentos habitantes... menos do que um arranha-céus de apartamentos na Quinta Avenida, cujos habitantes têm em conjunto um rendimento decerto superior ao de muitos concelhos. Tudo é relativo, como dizia o motorista do táxi em Lisboa quando perguntou donde vínhamos. “lá fora podem ser ricos, mas não foram à praia ontem como eu...”.
Tudo é relativo, claro. Nova York tem tudo, mas não tem as meninas do Posto de Turismo desta aldeia na Beira Interior. Quando as burocracias, a incompetência e a mesquinhez local faziam desesperar da ideia peregrina de restaurar o Solar, no Posto de Turismo mesmo ao lado havia sempre uma palavra calorosa de boas-vindas. Um pólo de vida num lugar envelhecido e desertificado.
Nos intervalos das visitas dos turistas, a Vera, sempre sorridente e coquette, estava frequentemente sentada ao computador (sem internet, eu perguntei...) a escrever. Um dia soube que escrevia poemas e também as histórias tradicionais da região que lhe contavam os habitantes mais velhos da aldeia. Publicou agora o seu primeiro  livro de poesia, “Palavras Nunca Ditas”.
Apropriadamente, foi apresentado na Biblioteca Eugénio de Andrade, dedicada a este poeta natural do concelho. Espero que seja apenas o primeiro livro e que outros se sigam, para manter a cadeia de pessoas de espírito através de continentes e países que nos une a todos, onde quer que nos encontremos, de Nova York à Beira Interior.
Qualquer que seja o seu talento, o seu mérito e a sua notoriedade, são todas estas pessoas que nos separam do materialismo asfixiante e da frivolidade coscuvilheira em que temos que viver. São elas também que nos defendem do desespero e do egoísmo, durante os tempos difíceis das crises que sempre se sucedem e às quais é preciso saber sobreviver.
JSR

Saturday, October 15, 2011

64 - The Smooth Breathing of The Beast - O Suave Respirar da Besta

Willem de Kooning. Pink Angels. 
A ilha de Manhattan tem um barulho de fundo permanente que nenhum isolamento e vidros duplos conseguem abafar. Respira dia e noite como um enorme animal, sacudido frequentemente pelas sirenes de bombeiros e ambulâncias, pelas buzinas dos táxis e de outros condutores impacientes. Pode ser o ronronar da Besta, mas é um ronronar de actividade intensa na economia, nas finanças, nos negócios, assim como na cultura e na diversão. A respiração é particularmente suave na abertura da “Fall Season”.
Este ano, como todos os anos, a maior dificuldade é a escolha entre tantas solicitações, de acordo com os interesses e o tempo disponível. Alguns exemplos:
No MAD (The Museum of Arts and Design) há uma exposição “Picasso to Koons, the artist as jeweler”, mostrando alguns dos “petits cadeaux” feitos por artistas conhecidos para oferecer à família e amigos próximos. Podem-se ver desde trabalhos de ouro e prata, por Braque ou Koons, às miniaturas de mobiles de Calder, até aos seixos da praia e pedaços de osso que Picasso pintava ou esculpia para as amantes. Para quem gosta de joalharia e afins é uma caverna de Ali Baba, para quem não se interessa particularmente, dá uma vista de olhos e senta-se no restaurante a brincar com um novo iPad.
A propósito de iPad, a Apple mantém na Quinta Avenida uma loja aberta 24 horas por dia, na qual é preciso fazer fila para entrar. É um cubo branco, com o mesmo nome e o significado para os crentes da Kaaba em Meca, mas com a diferença de que em troca das “doações” se adquire alguma coisa concreta, a última inovação em ídolos tecnológicos.
No Carnegie Hall, a Mariinsky Orchestra conduzida por Valery Gergiev, apresenta “Tchaikovsky in St. Petersburg”, duas sinfonias que representam o princípio e o fim da atormentada carreira sinfónica de Tchaikovsky, “Winter Daydreams” e a “Pathétique”. “Winter Daydreams”, um trabalho da juventude que se quis inspirado da musica folclórica, sinfonia sempre em evolução, nunca considerada terminada, é a mais alegre e luminosa das suas obras, talvez porque para um Russo a tranquilidade das paisagens nevadas do Inverno têm um apelo romântico particular. A “Pathétique” representa o contraste, a maturidade, mas também a continuação das suas inseguranças psicológicas e do desespero pessoal que o devem ter conduzido ao suicídio.
Fora de Manhattan, “Manu’s Cartoons in Brooklyn” é uma exposição numa galeria chamada "The Invisible Dog", situada num prédio meio delapidado que serve também de atelier de artistas. Os cartoons são na linha do Charlie Hebdo, com o mesmo humor ácido acerca da burocracia, dos políticos em cata-vento dos dois lados do Atlântico e das desventuras de Dominique Struss-Kahn. Um tipo de desenho inspirado pelas ilustrações caricaturais que acompanhavam as notícias dos jornais e revistas antes da fotografia. Manu é o “nom de plume”, mas de caneta tanto de escrever como de desenhar, dum Francês que é funcionário da UNICEF em Nova York.
No MoMA (The Museum of Modern Art), está “de Kooning: A Retrospective”. Como o nome indica, uma mostra de todos os períodos da carreira de Willem de Kooning, considerado um dos artistas mais importantes do século 20. A ideia é apresentar as diferentes fases evolutivas durante um período de cerca de setenta anos, começando na Holanda e a partir de 1926 nos US. A retrospectiva inclui quadros, esculturas, desenhos e gravuras, incluindo os mais conhecidos, “Pink Angels”, “Excavation”, as várias “Woman series” e um enorme cenário de teatro chamado “Labyrinth”. No fim dos anos 80, o homem estava a pintar umas linhas vagas em quadros abstractos de cerca de 2 x 3 metros, que parecem azulejos gigantes para casa de banho.
Não é tudo, noutros “posts” mencionei a Ópera, mas há também o Teatro, uma retrospectiva cinematográfica interessante e, mais fora do “radar” pessoal, o New York City Ballet, uma infinidade de “Musicals”, “off Broadway shows”, etc. O respirar da Besta pode ser suave, mas é preciso dormir, fazer pela vida e neste período de crises várias, não perder de vista nem os Gregos nem os Troianos...
JSR

Thursday, October 6, 2011

63 - Nabucco’s spaceship landed the 5th of October... and departed with Steve Jobs.

Nabucco's spaceship

(O disco voador do Nabucco aterrou a 5 de Outubro... e partiu com o Steve Jobs)

Às 3:21 da madrugada (hora de Nova York) no dia 5 de Outubro, fui acordado pelo iPhone com uma mensagem na qual um amigo de Bruxelas exprimia os seus arroubos republicanos: “E viva a República! Viva a República Portuguesa! Abaixo o anacronismo ridículo das monarquias! XXXX, residente há 45 anos numa monarquia...” Cento e um anos depois e não posso dormir descansado.
Durante o pequeno almoço, ao ler/ver as notícias no iPad, foi chegar aos media portugueses e ser invadido pela “cinco-outubrite” nacional: o discurso do Presidente da República e alguns comentários xexés sobre o mesmo assunto.
Subitamente, o Facebook invadiu o ecrã (como é que esses malandros conseguem fazer isso?) e, ao passar os olhos pelos posts, descubro que uma amiga se declara a favor duma monarquia constitucional, entre outras razões porque “o D. Duarte é um fofo”...
Mais tarde, ao trabalhar no meu MacBook (o iMac é pouco portátil...) soube da morte de Steve Jobs, um dos raros inovadores que tiveram a capacidade de mudar efectivamente os parâmetros do mundo em que vivemos. A tecnologia interage cada vez mais com a maioria das pessoas e muda a forma como se pensa o futuro. É como exemplo dessa influência e como homenagem, que aqui menciono todos os aparelhos da Apple que fazem parte dos meus dias.
Por coincidência, foi dia do “Nabucco” de Verdi no Met, com Maria Guleghina. Sim, a Opera do “Va, pensiero”, o coro dos escravos.
Nada a ver com as trapalhadas da implantação da República em Portugal, à primeira vista. A contemporaneidade de Verdi com a unificação italiana fez com que algumas das suas obras servissem de inspiração ao movimento e particularmente essa obra coral. O que é estranho, se se pensar racionalmente, pois esse anseio de liberdade dos escravos israelitas é usado para promover a unificação italiana subordinada a um rei...
Escrevi “à primeira vista”, porque durante o espectáculo, de execução relativamente banal diga-se de passagem (excepto algumas árias cantadas de forma mais dramática), o pensamento vagueou para o que há de constante na “anima” latina: o drama, o exagero, o egoísmo, as lutas fratricidas, a improvisação, as mudanças súbitas de opinião, os entusiasmos irracionais. Mas também a teimosia que pode ser perseverança, a capacidade de sacrifício por um objectivo em que se acredita, o sentido da grandeza, a criatividade e a virtuosidade que nascem da desordem. Os gregos condensaram estas características de todos os povos mediterrânicos que os precederam e passaram-nas aos romanos, que criaram a matriz da civilização europeia.
Ainda hoje somos nós que neles nos revemos, por contraste com os europeus do Norte que sempre tiveram que poupar ajuizadamente para sobreviverem ao Inverno.  Os povos do Sul, pródigos e irrealistas, querem tudo e já, enquanto o Sol brilha, inventam deuses à sua medida para os tirarem de apertos quando precisam e a quem culparem quando morrem por imprevidência.
Quando chegou o “Vá, pensiero”, uma das várias orações espalhadas pela obra, o impacto visual foi... “weird”, estranho e bizarro não traduzem bem o carácter surrealista da coisa. O cenário oval, montado na máquina rotativa, parecia um disco voador. O coro do Met até é bom, mas ouvir as palavras inspiradas do salmo “Junto aos rios de Babilónia” vindas dum grupo encavalitado nos diferentes compartimentos duma nave espacial foi um momento único, alguns diriam sobrenatural...  
Quando o cenário rodou, deixando as margens do Eufrates, espero que a nave espacial tenha levado Jobs para um paraíso tecnológico de ficção científica, melhor do que este imaginado pelo cenarista do Met.
JSR

Tuesday, October 4, 2011

62 - Anna Netrebco

Anna Netrebko in Donizetti’s “Anna Bolena” at the Met
É favor não dizer mal da criatura. Por enquanto, porque se continua a engordar assim, vou ter que actualizar o mapa das estrelas. Entretanto, a Russa é a minha soprano favorita. É certo que o tempo passa e já não é a mesma de “Meine Lippen sie Kussen so heiss” (Giuditta, Lehar) ou de “Song to the Moon" (Rusalka, Dvorak). Esta Ana Bolena começa a entrar na categoria dos pesos pesados, o que é uma pena.
Este ano, o Metropolitan Opera de Nova York abriu a época com a Netrebco no papel principal da “Anna Bolena” de Donizetti. Um papel que já foi representado por algumas das minhas sucessivas sopranos favoritas. Cresci com os ecos da Maria Callas, escolhi Leontyne Price,  depois Kiri Te Kenawa e mais tarde Angela Georghiu. Os peritos podem considerar que não foram as melhores do respectivo tempo, porque não se trata de uma ciência exacta, mas duma questão de gosto.
A Opera é um gosto adquirido. Como a política, a religião ou o futebol, onde há gostos para tudo. Há quem ainda seja comunista, seguidor de Zoroastro ou do Vitória de Setúbal. As histórias são inverosímeis, as personagens extravagantes e a característica principal dos partidários/crentes/adeptos é perderem a racionalidade e o sentido de humor no que respeita às suas preferências. Mas na Opera a música é por vezes esplêndida, como são certas obras sacras e, para quem aprecie o género, certos coros do antigo "exército vermelho". Já os hinos dos clubes pertencem à categoria da música pimba.
As críticas desta “Anna Bolena” são variáveis e por vezes contraditórias. Quanto à obra em si, é pacífico que o libretto é chato e comprido, muita confusão para explicar que o “Enrico” VIII, já na cama da “Giovanna” Seymour,  quer ver-se livre de "Anna". Porque esta não lhe deu um herdeiro varão (boa desculpa), mas cuja filha Elizabeth acabará por ser rainha, o que já é outra história.
O que interessa aqui é que um crítico do Washington Post (ou antes, crítica, o que talvez explique a agressividade...) acha que o maestro não tinha entusiasmo, que o encenador não era o Luchino Visconti do tempo da Callas, que os outros cantores eram principiantes e, (how dare you?) que a Netrebco fez umas quantas fífias e corria erraticamente pelo palco a torcer as mãos.
Já o crítico do New York Times (com sobrenome italiano...) mostra outra percepção do assunto e considera que sendo apenas a segunda vez que a Netrebco canta esta obra (a primeira foi em Viena, em Abril) foi uma boa performance, cheia de “carisma vocal”, sobretudo nas coloraturas. “She looked regal and splendid”, conclui. O italiano é do meu clube.
JSR