Saturday, May 26, 2012

105 - Os Conjurados


The Conspirators - Aldous Eveleigh

Afinal, alguns destes anjinhos no governo tinham vendido as almas ao diabo. Como já o tinham feito os da fornada anterior, despedida nas últimas eleições. As almas vendidas discretamente aos vários diabos que os fizeram, que os sustentam, que os informam, que lhes dão ordens e que lhes cobram os serviços com juros de usura. Os diabos que traçam no chão à sua volta a linha dos limites a não ultrapassar e dos interesses a não descurar.
Até que o primeiro anjo tropeça na língua uma vez, e depois outra, perde o equilíbrio e o pé, entra em queda cada vez mais acelerada e acaba por arrastar os outros anjos todos. Na queda vão os outros falsos anjos e mesmo os anjos verdadeiros que se deixaram prender na engrenagem, que não têm culpa nenhuma e até estão a dar o seu melhor dentro das suas capacidades. Mas os falsos anjos das incubadoras partidárias acabam sempre por tropeçar na língua ou pisar o rabo dum gato escondido, são apanhados por pequenas coisas que poderiam facilmente evitar. Mas não conseguem, porque os “parvenus” morrem pelo pecado de arrogância.
Quando e onde é que já soubemos anteriormente destas conspirações de capa e espada, com sociedades secretas, guerras de espiões, grupos mafiosos disfarçados de empresas legítimas, aspirantes políticos comprometidos com uns e com outros, lutas pelo controle dos meios de comunicação, apropriação das instituições financeiras e da economia, a tomada de assalto de partidos políticos e finalmente do governo dum país? Por vezes mesmo guerras civis ou guerras entre países?
Estas conspirações repetem-se vezes sem conta ao longo da história e por todo o lado. Se reduzirmos o âmbito apenas às épocas mais recentes e às democracias de matriz ocidental onde o respeito pelas leis é suposto ser a base da vida social, mesmo assim temos o embaraço da escolha. Todos estes países e até o Vaticano têm esqueletos sem conta nos armários dos palácios do estado e grandes parangonas recentes nos jornais.
Mas nem todos são iguais. As diferenças estão na forma como as conspirações são descobertas, no tratamento, celeridade e consequências judiciais, assim como nas sequelas políticas.
Em alguns países a descoberta é feita pelos meios de controle e nos prazos previstos pelos estados de direito para esse efeito: Tribunais de Contas, auditorias, inspecções, polícias, etc. A justiça funciona em tempo útil com o desmantelamento das associações de malfeitores, a falência das empresas ilegais, e a condenação dos culpados a multas substanciais e penas de prisão efectiva. A factura política é paga a tempo com demissões ou perdas de mandatos. As mais recentes falcatruas de fundos de investimento, bancos e sociedades financeiras nos Estados Unidos, assim como as escutas telefónicas feitas por tablóides em conluio com membros do governo no Reino Unido, tiveram já e parcialmente, essas consequências.
Noutros países a descoberta é feita quando se zangam as comadres, que segredam aos amigos convenientes os escândalos em série explorados até ao limite pelos órgãos de comunicação. A justiça afoga-se em leis feitas propositadamente de conteúdo labiríntico, para não se chegar a lado nenhum. As culpas políticas acabam com o sacrifício de bodes expiatórios de terceiríssima categoria. O financiamento das penúltimas campanhas eleitorais e outras falcatruas em França estão ainda a arrastar os pés. No Vaticano demitiram o presidente do Instituto para as Obras Religiosas. Na Itália, em Espanha, na Grécia e em Portugal, nem se sabe por onde começar com todos os “casos” de corrupção e de associações de malfeitores. Mas se há uma certeza, a julgar pelas águas passadas, é que vai tudo continuar quase na mesma.
Quase, porque neste aspecto, em Portugal as coisas estão a precipitar-se. É temporário, mas vale apenas aproveitar enquanto dura. Por um lado, o aperto da austeridade e a obrigação de fazer algumas reformas estruturais para troika ver, estão a aumentar a eficácia da luta contra algumas das conjuras que existem para apropriação particular dos bens e interesses do estado. Por outro lado, os resultados judiciais são ainda objecto de ridículo.
Com este novo destapar dos bastidores, aparecem os resultados das conivências e as cenas de ciúmes, para lembrar como as coisas funcionam realmente. Entre políticos e jornalistas, que se tratam por tu nos debates televisivos e obviamente trocam confidências de travesseiro. Entre as facções económicas e as suas guerras familiares. Entre partidos políticos que põem as suas ambições e devaneios ideológicos, acima dos interesses do país.
Estes incidentes começam pequenos mas nunca se sabe onde vão parar. Podem descarrilar o pouco de bom que está a ser feito e com isso arrastar todo o país no mesmo descalabro.
JSR

Friday, May 18, 2012

104 - Os Demagogos e os Ventos do Deserto

Djinn
Em tempos de dificuldade, como os que atravessa agora a Europa, os demagogos são como as pragas tradicionais. Saem das fendas entre as pedras, caiem com as chuvas ou vêm transportados pelos ventos. Criticam todas as reformas feitas pelos governos, fazem eco a todos os problemas, doem-se de todos os males, partilham todas as indignações, atiçam todos os descontentamentos. Consideram-se os únicos a defender o bem, os pobres e os oprimidos e são populares entre os que culpam sempre os outros por tudo o que de mau lhes acontece. Vivem do outro lado da realidade, fazem correr atrás de miragens e apontam de forma estridente um ou mais bodes expiatórios. São os profetas de todas as desgraças e os sacerdotes de todas as promessas, que vemos, ouvimos e lemos todos os dias.
A demagogia é uma praga que atinge todo o mundo duma forma mais ou menos primitiva, mais ou menos bruta ou ignorante, de acordo com o grau de desenvolvimento. Todavia, a fuga da realidade é um mal característico da área mediterrânica, atingindo os níveis mais delirantes quanto mais perto se encontra dos ventos dos desertos. Viver nos limites  da sobrevivência provoca alterações mentais de adaptação e alucinações em que desaparece a separação entre o real e o imaginário. A sul do Mediterrâneo, os habitantes conhecem as miragens e acreditam que os ventos são habitados por espíritos turbulentos, os “djinn”. Dessa parte do mundo saíram profetas em série, que propagaram diversas crenças em misteriosos universos paralelos que, quanto mais irracionais e ritualistas, mais depressa se espalharam entre os mais frágeis de outros povos e de outras regiões.
O império mediterrânico de Roma foi varrido por crenças sucessivas em vários desses deuses dos mistérios, que subverteram a estrutura de essência humana do panteão greco-romano. No território europeu, os limites onde chegaram essas epidemias de contaminações mentais correspondem mais ou menos aos reinos da irracionalidade que duram até ao presente. Os países que se governam mal, porque têm dificuldade em reconhecer a realidade e separá-la dos seus desejos ou de crenças utópicas. Mesmo o tempo dos profetas laicos e das suas religiões materialistas, passou. Mas ficaram os demagogos retardados que apelam à irracionalidade colectiva para acreditar que os seus desejos se podem tornar realidade apenas como objecto de fé. O acordar é quase sempre trágico, mas as variações são infinitas. Os “djinn” aparecem para nos atormentar de cada vez que há eleições e continuam a incomodar entre elas.
Os países onde chegam os ventos do deserto estão cheios de demagogos que prometem  a cada eleitor uma candeia mágica com um génio dentro que lhes satisfará todos os desejos. E os eleitores acreditam. E elegem governantes irresponsáveis que depois têm a surpresa de não encontrar entre os dourados dos palácios que passam a ocupar, nem candeias nem génios para distribuir. E o povo quer os seus desejos satisfeitos. E os outros demagogos que não foram eleitos organizam manifestações, protestos e distúrbios, até que a situação se inverta. E tudo recomeça.
Quando lhes cai em cima a realidade de estarem falidos, porque os cofres estão efectivamente vazios, então pedem ajuda a organizações internacionais e aos países do Norte onde não chegam os ventos do deserto.  E são ajudados, embora com condições. Mas quando é preciso respeitar essas condições, aparecem dentro de cada país as diferenças de contaminação mental da realidade, entre governantes e demagogos, que por vezes são os mesmos e se alternam.
Neste momento, é a irresponsabilidade da maioria dos eleitores gregos e da classe política que os explora, que nos preocupa e que é exemplar, talvez mesmo por se tratar do berço teórico das democracias como Atenas e das sociedades militares como Esparta. O triste facto é que são agora incapazes de distinguir o mundo real da bancarrota em que se encontram, das fantasias demagógicas de múltiplos partidos recalcitrantes que se agarram a alternativas que só existem na sua imaginação, mas que correspondem ao que a populaça quer acreditar. O que se passa na Grécia é a caricatura avançada do que se passa também nos outros países da Europa do Sul e que se tem repetido vezes sem conta na história.
Reis e caudilhos de toda a ordem, imitados pelos seus povos, encontram sempre boas razões para gastar mais do que aquilo que produzem. Depois, enquanto têm crédito pedem emprestado a quem tem excedentes, sejam os comerciantes judeus, as ordens religiosas ou os banqueiros das cidades negociantes italianas ou hanseáticas. Quando finalmente se apercebem que não podem pagar, acusam os judeus de qualquer coisa para os assassinar, fazem a guerra contra as cidades credoras ou conluiam-se com o Papa para destruir os Templários. Desaparecem os credores, desaparecem as dívidas.
Esses tempos passaram, mas uma das características da estupidez individual ou colectiva, é não aprender com a experiência e repetir os erros cometidos vezes sem conta. A culpa nunca é de quem não se soube governar, a culpa é sempre de quem lhes emprestou os meios de criar um mundo de faz de conta e agora lhes faz a ofensa de não deixar que continuem a viver à custa dos seus créditos. Na Grécia deixaram de ouvir as poucas vozes realistas, os restantes são todos demagogos e os “djinn” já arrastam o país para as miragens entre as dunas do caos. Os outros países europeus infectados pelas crenças das mil e uma noites só não seguirão pelo mesmo caminho se houver gente suficiente que não se deixe contaminar, que tenha vontade de resistir e a capacidade de eleger ou manter governos que digam “não” ao facilitismo irresponsável.
JSR

Thursday, May 10, 2012

103 - A Destruição das Catedrais

Ruinas de S. Paulo - Macau
Published 17/05/2012 by "Jornal do Fundão".

   As “Catedrais” onde ainda se guardam a identidade, os conhecimentos, as certezas e os tesouros de cada nação, estão a ser irremediavelmente abertas e por vezes destruídas pelo avanço das marés da globalização. As mudanças trazidas em progressão geométrica pela evolução da ciência, da tecnologia, da integração  económica e das vagas de transformação industrial, acontecem depressa demais para a capacidade de adaptação política dos povos e das suas estruturas sociais.
Os governos dos países mais desenvolvidos, em vez de responderem às causas do declínio com as reformas estruturais adequadas para conseguir manter o patamar de abundância atingido pelas suas populações, são reféns das promessas imediatistas que os elegem e complacentes com a manutenção dos interesses instalados. Os povos tem a memória curta, o que os leva a votar uma vez e outra em quem mais promete e não no melhor projecto político. Normalmente quem mais promete são os mais medíocres, que se deixam arrastar em vez de dirigir.
O resultado das eleições na França e na Grécia não foi surpresa nenhuma. Desde que começou a crise, em todos os países europeus os partidos no governo perdem as eleições. Para definir estas situações bastam um par de parágrafos, porque as análises detalhadas só interessam a quem tem que viver na espuma dos dias.
A França faz a ponte entre a Europa germânica do Norte e a românica do Sul, por isso muita gente se interroga sobre o que vai fazer Hollande e as consequências para outros países. Com a volta dos socialistas ao poder, vamos assistir a uma repetição dos mesmos erros que cometeu Mitterrand no seu tempo e que o levaram a meter rapidamente o seu programa eleitoral na gaveta. Desta vez pode ser mais penoso devido ao momento em que Hollande fez as suas promessas absurdas, esquecendo as fragilidades crescentes do seu país. Quanto a influenciar outros governos europeus, continuará decerto Monti a ser mais credível, com a sua combinação de necessidade das reformas estruturais, cautela na escolha das medidas de crescimento económico e um maior papel para a Comissão.
A Grécia tem o destino traçado desde que a maioria do capital móvel (dos investidores, das empresas que ainda pagavam impostos e até muitas das economias da classe média) fugiram do país. Um pais dividido e ingovernável, que ainda não expurgou os seus demónios da longa ocupação otomana (a divisão em clans e a resistência à autoridade central) e que ainda não adquiriu capacidades de deixar funcionar sequer o simulacro de democracia que existiu desde o fim do regime dos coronéis. Mesmo isso só foi possível pelos estratagemas usados para obter o máximo possível de fundos de coesão e pela corrupção generalizada durante a distribuição dos dinheiros europeus a todos os grupos de interesses. Como a maioria dos votantes está contra as medidas de saneamento económico, deixa de ser possível maquilhar a realidade da bancarrota, o que significa a saída do Euro e por consequência a desordem. A necessidade de por ordem na sociedade passa por uma solução autoritária, o regresso ao passado. A derrocada grega trás, essa sim, contágios perigosos. Mas com todo este tempo para se preparar para a situação, se a Zona Euro não tem já prontas as medidas políticas e fiscais necessárias, é porque não merece existir.
A evolução da crise e dos problemas europeus só pode passar pela compreensão das mudanças da ordem económica mundial e pelas medidas necessárias para a expansão das industrias do conhecimento e todas as outras áreas em que os países desenvolvidos ainda têm vantagens competitivas. Mas mesmo esta nova revolução industrial em marcha, que vai trazer de volta muitas industrias manufactureiras, só vai resolver o problema do desemprego nas áreas mais especializadas que necessitam de cada vez mais conhecimentos e menos pessoal. Fora das altas especializações e dos serviços de qualidade há cada vez menos portas de salvação nas “Catedrais” da Europa.
JSR

Tuesday, May 1, 2012

102 - As Ditaduras Esquizofrénicas

May Day
Neste primeiro de Maio, com tantas tradições ancestrais de celebração dos ritmos da natureza e tantos significados espúrios mais recentes, leio num jornal que a China proibiu a exibição das cenas de nu do filme “Titanic”. Têm razão, a Kate Winslet integral não é oficialmente para os olhos dos proletários, que não a merecem.
Os proletários devem manifestar neste dia a sua satisfação por viverem num “paraíso dos trabalhadores” com marchas militares. Os que ainda são explorados pelo capital devem desfilar com bandeiras exprimindo o desejo de emigrarem para esses paraísos. Boa viagem. Mas lembrem-se que à chegada não poderão ver um filme com uma mulher nua. Entre muitas outras coisas proibidas. A não ser que sejam membros do partido ou os seus agentes empresariais, porque esses têm meios para comprar os CDs clandestinos e tudo o resto. Já que Mao tenha invocado a medicina tradicional para nos seus últimos anos se fazer aquecer por várias jovenzinhas simultaneamente na sua cama, é doutrinariamente perfeitamente ortodoxo...
Mas as ditaduras comunistas não são as únicas a limitar as liberdades individuais e colectivas duma forma esquizofrénica. Em todos os regimes autoritários as definições de moral e os atropelos a essas definições são sempre um catálogo de hipocrisias.
No Irão, os guardas da revolução dos ayatollahs assediam na rua as mulheres que não se tapam suficientemente, mas a venda de cassetes pornográficas é o grande negócio dos bazares. Situações similares acontecem noutros países islâmicos com burcas e niqabs e restrições à educação, ao trabalho e à autonomia.
Nos estados dominados pelas religiões “reveladas” de origem tribal, o patético das tradições obtusas tem-se mostrado pouco permeável ao tempo e à razão. Basta uma consulta à Wikipedia sobre o Ayatollah Khomeini, ou para ler qual o tipo de assuntos em que se especializam os “doutores” da sharia, para ter uma ideia do fosso que separa as democracias seculares desse outro mundo em que ainda vivem esses (e outros) selvagens.
A recordar o que disse Saramago sobre os “manuais de maus costumes”... e a esquecer que nunca foi viver para nenhum dos paraísos proletários tão caros aos seus correligionários. Porque sabia bem a diferença entre a “pose” para bugio ver e a realidade.
As definições de moral mudam com os tempos e com as civilizações. Mas a aplicação das suas leis e eventuais sanções variam sempre de acordo com as classes sociais. Não são só os Maos e as suas idiossincrasias. Porque são sempre os mais fracos que estão na mira dos vigilantes da obediência às práticas dominantes: as mulheres, os deslocados, as minorias religiosas, étnicas ou sexuais, os dependentes de vícios proibidos, os pensadores livres.
As ditaduras dos costumes são sempre esquizofrénicas, seja qual for a sua desculpa doutrinária. As leis iníquas e as repressões são ineficazes porque só servem para dar um estatuto social aos fanáticos ignorantes que as aplicam.
A ignorância pode ser temporária, mas a estupidez é para sempre.
JSR