Monday, March 26, 2012

97 - A Cada Geração a Sua Crise

Beavis and ButtHead - Generation in Crisis
Nestes tempos de crises diversas, tem estado na moda perorar sobre o estado do país e as características das recentes gerações que o habitam. Têm-lhes chamado sucessivamente: geração “rasca” por falta de qualidade e de espírito critico, geração “à rasca” por falta de emprego ou de trabalho; geração “indignada” por falta de dinheiro e de rumo; “geração parva” porque julga ter só direitos e não deveres; geração “mal formada” porque acredita nos vendedores de ilusões; e geração “piegas” porque se queixa de tudo e de todos, sem ver a necessidade de esforço próprio. Significativamente, fala-se mais do que se escreve, porque a reflexão necessária à escrita funciona como um travão à enunciação do disparate mal pensado.
Cada geração, seja duma família, duma tribo ou duma nação, recebe uma mistura diferente dos genes comuns. Como um baralho de cartas, de cada vez que é misturado e distribuído, as “mãos” são diferentes embora as cartas originais sejam as mesmas (na realidade, os genes também vão evoluindo, mas este não é um artigo científico). Cada indivíduo recebe as características físicas e de inteligência, as qualidades e os defeitos que são comuns ao seu grupo, mas em proporções que lhe são próprias. A auto-avaliação realista e o espírito critico em relação à cultura social, são das características mais mal distribuídas.
As pessoas têm diferentes formas de inteligência, de astúcia, de perseverança e de motivação, para serem bem sucedidos na sua esfera privada, no seu trabalho e na sociedade. Uns mais depressa do que outros. Uns duma forma mais gregária e outros de forma mais solitária. No “baralha e volta a dar” da vida, cada qual acaba por encontrar o seu lugar e a sua forma de contribuir para o bem comum. Sobram sempre uns quantos inadaptados que não se encaixam na sociedade tal qual ela é (e não como cada um acha que ela devia ser). São, do lado positivo, os inventores, os artistas, os críticos; mas também, do lado negativo os malfeitores e os parasitas. É preciso de tudo para fazer um  mundo.
Em condições de stress, como são as crises económicas e sociais, a quantidade de “desafinados” que não encontram o seu lugar aumenta e não só por culpa própria. Não encontram saída para desempenhar na comunidade os papeis para os quais se prepararam (ou não se prepararam, e esse é o maior problema), nem outra função qualquer que lhes permita dar um sentido às suas vidas e ganhar a independência económica. Para esses, o mundo está profundamente errado. Quando se juntam todos os que se encontram nessas situações, aparece uma quantidade de gente indignada na rua.
São as vítimas de todos os predadores, nacionais e internacionais. Fazem lembrar o legionário romano dos livros do Astérix, que resmunga “Engagez-vous, rengagez-vous, qu’ils disaient”, depois de levar uma sova do Astérix (Sarkozy) e do Obelix (Merkel), porque antes de se alistar (endividar, com o “compre agora e pague depois”), não leu as letras pequenas dos contratos (indicando juros que mais tarde não consegue pagar) e é depois obrigado a lutar contra insurrectos fortalecidos com a poção mágica (as flutuações dos mercados, informatizados com algoritmos indexados aos “ratings” das agências, num círculo totalmente viciado a favor dos interesses que as sustentam). Quem não pertence a esses interesses, nem os conhece, não pode saber o que fazer e torna-se uma vítima indefesa.
Até aos anos sessenta do século passado, a educação, a instrução e os meios de comunicação social, correspondiam a um país em evolução desigual. Em geral, a educação em casa consistia em aprender o que as classes da média burguesia, sempre “en retard d’une guerre”, consideravam como os bons costumes e as boas maneiras. A instrução dependia da localização e da qualidade das escolas primárias, das possibilidades das famílias enviarem os filhos para o secundário e também das classificações para entrar no ensino superior. O acesso ao mercado do trabalho fazia-se primeiro pelos conhecimentos, as influências e as cunhas, só depois vinham as competências,  as capacidades e a motivação de cada um.
Nos anos setenta chegaram os “baby boomers”, filhos dos que tinham passado pelas privações das guerras mundiais e civis, que não tinham quase nenhuns apoios sociais, nem para a saúde, nem para a reforma e com pouca ou nenhuma influência na condução dos destinos do país em que viviam. Esta geração, decidida a ter melhor qualidade de vida que os seus pais, mudou a situação e criou o mundo em que hoje vivemos. Um mundo em que tem havido liberdade política, apoios sociais, progresso económico. Que tudo isto esteja presentemente em risco por causa duma crise exterior, assim como de excessos e erros de gestão nacionais, é outra história. Esta qualidade de vida nunca tinha sido atingida antes, nela nasceram e cresceram os que chegam ao mercado do trabalho neste princípio do novo milénio e que constituem certamente a geração mais protegida e com mais oportunidades, desde sempre. E ainda se queixam.
A geração piegas deve aos pais a sua condição. Pais que não souberam como os educar. Professores que não podiam fazer o trabalho dos pais na educação e integração social e que muitas vezes se desmotivaram no seu próprio trabalho de instrução escolar e académica. Muitos não aprenderam a socialização nem em casa nem na escola. Não conhecem a disciplina, nem hábitos de trabalho, nem a responsabilidade pessoal, nem a competição individual. Alguns seguiram o caminho do menor esforço e tiraram “cursos de aviário” sem qualquer saída profissional. Não conhecem as boas práticas de vida pessoal, nem as profissionais. Fazem estágios, mas depois ninguém os quer contratar. Porque não há trabalho ou porque têm pouco a oferecer?
Agora esperam que alguém tome conta deles, como crianças serôdias que saem tarde da dependência dos pais e esperam ficar dependentes duma entidade mítica superior, seja o Estado ou o Governo. Embalados por demagogos e iluminados, muitos nem se apercebem realmente que o Estado são os impostos dos outros e que o Governo gere o dinheiro recebido dos que trabalham.
“Queremos um bom emprego com um bom salário”, dizia uma mulher nesta última greve, provavelmente uma sindicalista da esfera comunista reaccionária. Daqueles comunistas que destruíram o socialismo utópico do “cada um contribui de acordo com as suas capacidades e recebe de acordo com as suas necessidades”, porque contribuem o menos possível e recebem o máximo que conseguem extorquir. Se fosse uma sindicalista representativa dos verdadeiros interesses dos trabalhadores, teria dito mais realisticamente: “queremos um trabalho correctamente pago” de acordo com as qualificações e a contribuição de cada um.
Está na moda encontrar novos nomes para velhas coisas e novas definições para velhos conceitos. Como em todas as gerações, em todos os lados, há certamente os parvos e os mal formados, mas porque hão-de ser esses a definir a geração a que pertencem? Depois dos “baby boomers” tudo é bom para tentar definir tendências que vendam jornais, livros, música, televisão, o que quer que seja. O “marketing” reduz a vida a um jogo de espelhos sem substância. Porém, na realidade, os que estudam, inovam e trabalham com motivação e inteligência, são esses que definem a geração presente e o futuro do país.
JSR

Tuesday, March 20, 2012

96 - O Equinócio da Primavera e os Seus Ritos

Afghanistan Spring
Estas considerações são provocadas pela transição de estação do ano e pela coincidência de ter recebido hoje umas notas de viagem dum amigo e antigo colega, que está a dar assistência técnica ao Afeganistão, entre outros países em dificuldades.
O novo ano romano começava nos idos de Março, ou seja, a meio do mês dedicado ao deus Marte. Esta já era uma adaptação das celebrações anteriores realizadas pelas religiões da natureza, dedicadas ao despertar das plantas e alguns animais, depois do sono invernal. A altura em que os dias e as noites são iguais e a duração diária da luz começa a superar a duração das trevas.
Estes simples factos vieram depois a ser recuperados pelas chamadas religiões reveladas, que não são mais do que compilações de tradições acumuladas ao longo dos tempos por diversas tribos humanas. Com a invenção da escrita chamaram a essas compilações “bíblias”, conjuntos de livros, ou resumos como o Corão, ou outras coisas que os povos consideraram “sagradas”, o que no sentido original de “venerandas” não traz mal ao mundo, mas que consideradas como “a palavra definitiva, infalível, única e completa” dos deuses respectivos, é uma perfeita aberração histórica e um atentado à inteligência.
Esses mitos sobre a transição destas estações do ano, que passaram de mão em mão, incluem coisas como: a adoração da deusa mãe que tem tido muitos nomes (Ísis, Afrodite, Maria), que desperta a vida, protege as sementeiras e faz surgir os rebentos das flores, das folhas e dos cereais; a tradição dos vários filhos de deuses e de mulheres mortais que salvam os seus povos através do seu próprio sacrifício e morte, para depois renascerem com a Primavera (Osíris. Adónis, Dionísio, Cristo); e muitas outras tradições, como as ligadas aos ovos numa simbologia da vida em embrião.
Conta aquele meu amigo nestas mais recentes crónicas de viagem, como no Afeganistão se estão a preparar leis de acordo com as decisões dos “ulemas”, um grupo de fundamentalistas islâmicos que querem impor a “sharia” na sua forma mais retrógrada, com a qual os muçulmanos mais civilizados não estão evidentemente de acordo. Entre essas leis está por exemplo o retorno das mulheres a uma condição inferior de menoridade social. Não vão poder sair de casa para estudar, trabalhar, fazer compras, viajar ou qualquer outra actividade, sem serem acompanhadas por um membro masculino da família.
Estão os Estados Unidos e os seus aliados, a sacrificar as vidas dos seus soldados e rios de dinheiro, em países cuja evolução civilizacional está ainda em plena Idade Média. É certo que é preciso defender os interesses geoestratégicos da parte da humanidade mais desenvolvida ou em vias de desenvolvimento, que partilham os mesmos valores humanistas, sejam religiosos ou seculares. Mas é muito difícil aceitar que tanto esforço serve de muito pouco. As consequências da globalização tornam impossível isolar completamente estes e outros “parques jurássicos”, em várias partes do mundo. Neste ponto, nem a chegada da Primavera traz algum optimismo.
JSR

Monday, March 12, 2012

95 - Miss Minnie Goes To Macao

O título deste post é inspirado pela activista americana dos direitos civis imortalizada em “Miss Minnie goes to Washington”.
Uma Miss Minnie, portuguesa e contemporânea, partiu para oriente em vez do ocidente, para fazer um doutoramento em vez de participar em movimentos democráticos. Bem, espero que não se meta nisso, não vale a pena, o dragão já tem a sarna capitalista... Partiu mais precisamente para Macau, que não é só o inferno do jogo. Para quem não saiba, é também a sede de uma Universidade muito razoável e dum bom Instituto da Universidade das Nações Unidas (UNU).
Em tempos idos, Macau foi um porto importante na primeira rota comercial da carreira das Índias portuguesas, que levava anualmente os “barcos negros” de Lisboa a Goa, a Macau e ao Japão. Depois de vicissitudes seculares, um dia o hino nacional foi tocado pela última vez, o governador meteu a bandeira dobrada debaixo do braço e toda a administração portuguesa do Território partiu de volta a Lisboa.
Nos últimos anos antes da devolução à China, houve uma actividade frenética para consolidar o legado português de arquitectura religiosa e colonial, cultura, língua e sistema administrativo. Fizeram muita coisa, aumentaram a superfície através de aterros, construíram uma cidade nova e modernizaram  a economia para além do racket do jogo. Abanaram também o mais possível a tradicional árvore das patacas, para os vários projectos, para financiamento partidário na metrópole e para enriquecimento pessoal.
No meio dessa actividade, uma certa quantidade das patacas do jogo serviram para financiar projectos culturais e de educação. Já existia uma espécie de universidade mercantil, com poucos alunos mas muitos diplomas vendidos por correspondência. Foi comprada pelo governo do território, mudou de nome, de corpo docente e de gestão, e transformou-se numa instituição respeitável. Como cereja no bolo, foi também criado de raiz um Instituto internacional, parte da UNU.
Passados estes anos todos, o que é que a Miss Minnie foi encontrar? A maior concentração de Casinos do mundo, largas teias de negócios em todos os tons de cinzento a negro, como seria de esperar num porto franco com estatuto especial, e um parque histórico com os vestígios da presença portuguesa, para turista ver enquanto descansa o cotovelo de tanto puxar as manivelas das máquinas de jogo.
Macaenses de raiz, a mistura dos locais com portugueses e todos os aventureiros e piratas dos mares do Sul da China, são poucos e com eles extingue-se a última comunidade que ainda fala português. A cidade e ilhas foram invadidas nos últimos anos pela massa dos migrantes chineses. Resta a comunidade académica na Ilha de Taipa e alguns profissionais dispersos com partida adiada. Depois, há a Casa Silva Mendes, a vivenda colonial dum antigo comerciante rico, escritor e coleccionador, na colina da Guia, o lugar menos poluído de Macau. Da vivenda restam as paredes exteriores, o interior foi totalmente reconstruído para nele funcionar o Instituto Internacional de Tecnologia de Software.
É difícil a cultura e a ciência florescerem numa atmosfera onde resta pouco oxigénio, mas é possível. Desde que se faça entrar ar novo de vez em quando e se saia frequentemente para arejar as ideias. Para além dos dias de trabalho académico, a Miss Minnie vai encontrar depressa a claustrofobia dos lugares pequenos, das comunidades fechadas onde se entra devagar, de conceitos diferentes de cooperação, liberdade e segurança em sociedade. Aconselho-a a não ler ou reler Kafka quando encontrar problemas com as chinesices burocráticas, mas antes a fugir do calor e humidade, refugiando-se no ar condicionado a ler um dos livros de Pamela Kyle sobre a China, particularmente “A Translucent Mirror”.
Ah, e que aproveite a oportunidade de viver em Macau para aprender mandarim...
JSR

Tuesday, March 6, 2012

94 - O Deslumbramento da Frivolidade

The limelight...
Veio num jornal (pelo menos) a notícia que mais uma actriz de telenovelas (aparentemente chamam-lhes “estrelinhas”) se tentou suicidar por ter deixado de receber ofertas de trabalho. Parece que abriu o gás do fogão, mas uma faísca provocou uma explosão que destruiu o apartamento e ia deitando o prédio abaixo. Safou-se à justa, apesar das queimaduras graves.
Ninguém sabe é se vai conseguir voltar a fazer aquilo de que gosta, num meio que é por natureza superficial e volúvel. Se não conseguir, ninguém sabe se vai habituar-se a viver sem a droga dos holofotes e da atenção, ou se sabe ou quer fazer outra coisa que possa dar um sentido à sua vida.
Esta é obviamente uma história triste e paradigmática. Não sei se é o caso, mas muitos jovens deixam-se encandear pelas luzes da ribalta, seja nas artes ou no desporto, onde apenas uma ínfima percentagem consegue sair da mediocridade. Por cada sucesso, quantos sonhos desfeitos.
Se há tanta gente a correr atrás de ilusões (“prendre des vessies pour des lanternes” dizem os franceses), é porque a sociedade aprecia a sorte acima do esforço, a coscuvilhice em vez da informação, a leviandade mais do que a substância, os “15 minutos de fama” brilham mais que a perseverança. A barbárie chega quando a cultura de massas é nivelada pelo mais baixo, quando a frivolidade é mais valorizada do que o mérito.
Tudo isto é potenciado pelas tecnologias da comunicação instantânea e fugaz, que deslumbra os mais crédulos e os deixa entregues aos predadores, sem as barreiras de protecção dos mais fracos erguidas ao longo do tempo pela evolução humana ao criar comunidades de entreajuda.
No limite, esta situação é uma traição das sociedades liberais que se manifesta pela degenerescência de alguns dos seus próprios filhos, espúrios, frívolos e confusos, que nem se apercebem que vendem o seu futuro às crescentes ditaduras económicas, mediáticas e do entretenimento. Quando deixam de servir, são descartados como lenços de papel usados.
Felizmente não são todos, nem sequer a maioria, mas mesmo assim as consequências são significativas e preocupantes.
JSR