Monday, January 3, 2011

16 - O Réveillon e a Realidade

New York Glitz
Published 6/1/2011 by "Jornal do Fundão"

Passar a noite do fim do ano em Nova York com um grupo representativo daqueles que fazem “os mercados” é, para quem chega de Portugal (e mesmo que isso seja voltar ao que foi a vida normal durante muito tempo), um reencontro brutal com a realidade. Encontrar no mesmo lugar gente dos fundos de gestão, de bancos de investimento, de grupos de investidores independentes e “venture capitalists”, é uma oportunidade de auscultar o coração financeiro da América e, por extensão sem exagero, do mundo.
Com crise ou sem crise, os detentores de capital têm que investir o seu dinheiro para o fazer frutificar. Quem pára, morre. Os analistas e decisores das instituições financeiras e dos fundos de investimento, assim como os seus lacaios nas agencias de avaliação de risco, fazem a chuva e o bom tempo de quem precisa de emprestar e de quem precisa de pedir emprestado. Determinam-se assim os juros que recebem uns ou têm que pagar os outros, sejam estes últimos estados, bancos ou outras empresas, para se financiarem nos mercados de capitais. As avaliações das agências são neutras de outras considerações que não os interesses de quem lhes paga em relação ao rendimento oferecido, ao risco provável e ao seguro necessário para cobrir esse risco. O capital procura investimentos que assegurem o rendimento mais alto e as condições mais favoráveis. Onde quer que seja e, a prudência recomenda, no leque mais alargado possível de opções.
A presente crise tem múltiplas origens, desde a progressiva “deregulation” das actividades financeiras, ou seja, a diminuição dos controles impostos pelas leis dos estados, que por sua vez permitiram a multiplicação de instrumentos criativos que aumentaram exponencialmente os lucros dos intermediários em detrimento dos interesses dos clientes, até à ganância e desonestidade criminal. Há também uma componente cíclica de excessos incontrolados, devido à complacência e incompetência dos responsáveis das instituições públicas e privadas, que deveriam ter intervindo a tempo. Só alguns o fizeram e esses não foram ouvidos.
Está já em curso o retorno à “normalidade”, isto é, fica tudo mais ou mesmo na mesma. Há correcções dolorosas dos excessos cometidos, sejam balões especulativos que rebentam ou endividamentos imprevidentes que é preciso pagar com suor e lágrimas. Por vezes mesmo com sangue. Regista-se o desaparecimento de alguns dos participantes, as alianças de outros e a sobrevivência dos mais resistentes. Nada de particularmente assinalável para a plutocracia reinante. Porém, o mesmo não se pode dizer dos milhões que acreditaram nas publicidades do crédito fácil, dos investimentos miraculosos, do trabalho garantido, da reforma segura.
Aquilo que mudou realmente foram alguns dos paradigmas a que se habituou a geração que está agora a sair de cena. (Paradigma tem sido uma palavra muito em voga para definir um conjunto de parâmetros constituídos pelas teorias, pelos modelos, pelos métodos usados para tratar um certo assunto numa certa época; uma palavra muito em voga e geralmente mal usada e muito abusada). Esta mudança de paradigmas e a necessidade do render da guarda não é compreendido por muitos, nem aceite graciosamente por outros.
Das conversas bem humoradas e só aparentemente superficiais desta noite de entrada em 2011, vale a pena reter alguns pontos.
A pretendida crise do Euro é uma preocupação para os países que usam essa moeda, porque significa atraso na coordenação económica, financeira e fiscal duma União em progresso recalcitrante. Mas é de interesse muito limitado para o resto do mundo. Os investidores tomam as suas decisões de acordo com a realidade que existir a cada momento, seja no conjunto ou em cada um dos seus membros, seja ela qual for.
O mercado dos cérebros e das competências é cada vez mais global, sem estados de alma nem particular interesse em relação aos países de origem de cada um dos participantes. A referência à nacionalidade é uma curiosidade puramente social, motivo para mencionar memórias de férias ou piadas sobre as idiossincrasias dos dirigentes políticos do momento. A este respeito a mudança em relação à geração anterior é impressionante.
Na década de 1980, os estrangeiros, incluindo os portugueses, que povoavam Universidades, organizações internacionais, empresas multi-nacionais, os grandes grupos económicos e financeiros, mantinham ainda uma relação próxima com os seus países de origem. Voltavam regularmente a férias, muitos aproveitavam as oportunidades que se lhes ofereciam para ensinar, formar empresas e participar na vida politica do seu pais. De entre os portugueses, foram numerosos os ministros, secretários de estado, fundadores e administradores de Bancos e outras empresas, que voltaram ao pais. A experiência exterior e a passagem pela politica compunham um currículo que abria as portas a uma carreira de responsabilidades, de realização pessoal e de postos lucrativos. Eram poucos os que não queriam ou não podiam responder ao canto das sereias da volta à pátria.
Agora, muitos dos da nova geração consideram um possível retorno para trabalhar na sua terra como um falhanço profissional e pessoal, a possibilidade de aceitar um convite para uma participação politica como uma hipótese ridícula. Diminuiu a consideração que havia outrora pelos dirigentes políticos de relevo no círculo do poder, ou melhor, acham que houve uma mudança qualitativa e quantitativa. Enquanto que a geração anterior considerava a maioria dos políticos nas áreas técnicas como capazes, e os incompetentes eram a excepção, agora esta geração considera que a excepção é encontrar políticos competentes. Relatam histórias hilariantes de conversas com personalidades ligadas ao governo e à oposição, perguntam em que universo paralelo é que vivem e concluem que nem vale a pena dialogar sequer, que é uma perda de tempo. Com exagero, mas sem tristeza, sem pena, sem emoção. Resta esperar que continuem a voltar alguns, em número suficiente.
As nações-estados que fizeram a grandeza da Europa desde a Renascença, cuja competição cultural, económica e militar lhes deu uma vantagem decisiva em relação ao resto do mundo até recentemente, deixaram de ter interesse para os novos nómadas globais. As pequenas e médias nações fora da Europa ainda menos. Parece que só contam agora os mega-estados e as suas instituições, os grandes centros económicos e financeiros, as empresas multinacionais na ponta da inovação e da tecnologia, algumas organizações internacionais. A maioria dos contemporâneos mais qualificados desta geração estão espalhados pelo mundo de acordo com a evolução das suas carreiras. Esta tribo dispersa geograficamente, mas unida por múltiplos sistemas de comunicação permanente, por laços profissionais, por relações afectivas, pela competição e pelos interesses comuns, forma agora a sua própria comunidade global. Tudo o resto parece que vêem, cada vez mais e apenas, como paisagem.
JSR

1 comment:

  1. Um retrato muito lúcido e desapaixonado, talvez por isso mesmo, por não nos querer convencer de nenhuma teoria mas apenas nos contar o que vê e observa (se puderes ver, repara, se puderes reparar, observa, dizia algures saramago), talvez por isso mesmo é tão esclarecedor. Estará a chegar ao fim a época dos "grandes"? Dos grandes, enormes, espaços da globalização, das multinacionais, das grandes empresas, dos grandes empréstimos, das grandes dívidas, dos hiper tudo? Voltaremos ao "samll is beautiful" para conseguirmos finalmente recuperar a dimensão da nossa alma? Bom Ano Novo!

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