Monday, September 5, 2011

57 - “Mas Quem será o Pai da Criança?”

As festas das aldeias são um assunto sério, embora por vezes seja tratado com desprezo por alguns intelectuais “fast food”, encartados ou não com cursos obtidos nos aviários que floresceram após o desaparecimento do possidonismo “da outra senhora”. Chegam a ter a sua graça, quanto mais terra ainda têm entre os dedos dos pés, denunciando uma origem camponesa recente, mais críticos são das festas das aldeias e dos gostos populares.
Encontram-se mesmo alguns, nos programas e publicações sobre as artes, fazendo exegeses sobre a “country music” americana, onde existem sem dúvida algumas canções de incontestável inspiração, mas parece que a música popular portuguesa não merece a mesma consideração. Todavia, a música pimba é bem o equivalente nacional, com a incomparável vantagem da maioria da população portuguesa perceber a letra e estar em sintonia com a música de raiz tradicional. Não admira que tenha sucesso e que deva merecer respeito, mesmo daqueles que não a apreciam.
Isto escrito, é preciso uma boa dose de masoquismo para aturar quatro-noites-quatro sem dormir, numa casa que dá para o Largo principal da aldeia durante a sua festa anual. São doses ininterruptas de música no limite máximo dos altifalantes e woofers cujas vibrações imitam com vantagem as ondas sísmicas. Penetram as paredes de pedra dum metro de espessura, soltam telhas da cobertura, estremecem vidros duplos e portadas de castanho. Por vezes até se entendem as letras das canções, repetidas pela noite dentro, que acabam por ficar na memória.
Nesta época regressam “à terra” do interior do país os exilados em Lisboa, Porto e outras zonas da costa marítima, voltam os membros da diáspora nos países ricos da Europa e da América. A população das aldeias multiplica-se por dez ou mais, restauram-se as casas, anima-se o comércio, os largos onde no resto do ano só há velhos ao Sol, enchem-se de crianças, vizinhos afastados durante longos períodos reatam amizades e passam as noites a pôr a conversa em dia junto da fonte. Um país disperso pela aventura e pela adversidade, que se reencontra uma vez por ano.
Durante os dias da festa, sucedem-se as bandas, repetem-se os mesmos êxitos de autores que podem ser desconhecidos dos mais alheados, com letras e músicas de inspiração variável, mas que são certamente férteis em imagens brejeiras e frases de duplo sentido. “Mexe, mexe, que eu gosto”, “a pulga na minha cama”, “os rapazes vêm com ela fisgada” e, claro, “mas quem será o pai da criança?”, não terão exactamente a veia de Bocage, mas servem o mesmo objectivo, encorajar uma população pouco fértil...
Durante estes quatro noites e dias, houve quatro missas, quatro novenas, três procissões, das quais uma nocturna a lembrar os costumes de outros tempos mais inocentes. Com serviços de restaurantes e bares, muita cerveja para desatar as línguas, passaram dúzias de vezes a canção com a mesma pergunta: mas quem será o pai da criança? Até aqui, compreende-se, é a mais velha história do mundo. Menos compreensível é outra canção que passou no fim das festas, perguntando quem será a mãe da criança! Não admira que o país ande mal, já nem se consegue observar o simples preceito latino “mater semper certa est, pater incertus”... 
JSR

2 comments:

  1. Sou uma leitora atenta e fiel do Caged. Para não variar, gostei muito do post. Na minha freguesia ainda há o leilão. Neste leilão há de tudo, desde a chouriça do Sr. Neca à Porca da D.Maria... Tenho cá para mim que as letras das músicas pimbas foram inspiradas nos Leilões de Figueiredo. Bjs

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  2. Obrigado, Sara. É verdade, não mencionei o leilão das oferendas com os seus trocadilhos inevitáveis, o sorteio das rifas e outras coisas. Quando escrevi o post estava ainda aturdido pela música e agitação (o tal "barulho das luzes"...). Mas parece que o leilão de Figueiredo deve ser especial... Abs

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