Friday, March 11, 2011

29 - O Discurso do Presidente e o Discurso do Rei

"The Preacher" by JoeRay Kelley
Published 17/3/2011 by "Jornal do Fundão". 

        Para além do pequeno lapsus linguae, ao dirigir-se a si próprio (Ex.mo Senhor Presidente da República... em vez de ao Presidente da Assembleia da República), há um ponto comum entre o discurso de tomada de posse do Presidente português, e o discurso do inglês George VI descrito no filme “O Discurso do Rei”.
O ponto comum são as circunstâncias históricas. Portugal não está no mesmo tipo de guerra total em que se encontrava a Inglaterra nessa altura, mas está também numa guerra de sobrevivência nacional.
O discurso que George VI pronunciou, superando a sua gaguez, foi um encorajamento aos povos do seu Império para superarem as dificuldades da guerra e resistirem, lutarem pela sua liberdade e os seus valores. Assumia sem hesitação que todos os povos do Império Britânico partilhavam os valores da opinião pública da Inglaterra.
O discurso do Presidente foi mais do que “a shot across the bow” ao seu governo, mais do que uma advertência à classe política portuguesa, foi um ultimato à sociedade e ao povo português. O governo está a prazo, o regime em risco, a democracia ameaçada, porque o país está em bancarrota. Ou a opinião pública  portuguesa, a começar pelos partidos políticos e continuando pela sociedade civil, têm um sobressalto de consciência da realidade, ou o país desaparece como entidade independente, perde o pouco de soberania que lhe resta.
A integração europeia foi e é, o único caminho possível para que o país aspire a  um futuro minimamente próspero. O que correu mal foi a repetição de erros atávicos: o falhanço das reformas indispensáveis (do ensino, da economia, da justiça), a avidez descontrolada dos privilegiados pelo poder político, o lucro fácil das elites financeiras à custa da ignorância das classes populares, através dum encorajamento avassalador ao endividamento. E um erro novo: aumentou a necessária solidariedade social, mas sem garantir a existência de meios para a pagar. Tudo isto financiado por empréstimos exteriores, que também atavicamente acabam em bancarrotas.
O país está falido, o Presidente citou o Governador do Banco de Portugal que reconhece que a situação da dívida é insustentável, e acrescentou o óbvio, que com uma economia estagnada não há possibilidade de melhoria, nem credibilidade. Os esforços do governo para evitar o inevitável, assim como a esperança de que a salvação venha da União Europeia, estão condenados de avanço. As condições de ajuda financeira, impostas pelo governo económico europeu agora em formação acelerada, não são menos exigentes do que a condicionalidade dum empréstimo pelo Fundo Monetário Internacional.
A União Europeia é uma associação de estados, com mecanismos de apoio ao desenvolvimento, mas sem vocação de assistência inter-estatal. A opinião pública dos países mais produtivos, rigorosos e ricos, não quer pagar os desvarios, a falta de produtividade e a falta de rigor dos países mais pobres. Mesmo que os países mais ricos beneficiem, e muito, com as importações e o consumo dos países mais pobres. Amigos, amigos, negócios à parte.
O que fazer? É extraordinário que num país que passou por tantas situações semelhantes na sua história recente, as bancarrotas dos últimos anos da monarquia e da primeira república, e as duas antes da presente, que já é a terceira da terceira república, ainda haja quem pretenda que não sabe o que é preciso fazer, ou faça exigências irrealistas. Mas é isso mesmo que transparece da opinião pública que se faz ouvir, as marchas, as greves, o radicalismo oportunista.
A maioria, tem que haver uma maioria da opinião pública racional que finalmente se manifeste, que exija uma aliança dos partidos responsáveis para a aplicação das medidas de saneamento financeiro, de encorajamento económico, de apoio empresarial, de reestruturação administrativa e outras, que tão eloquentemente têm sido propostas pelos bons especialistas que este país felizmente tem. Porque o tempo dos tribalismos partidários e das arrogâncias pessoais se esgotou. Leiam outra vez o discurso do Presidente, ou o do Rei, tanto faz.
E se não for possível o entendimento nestes confins da Hispânia? ... Pode-se sempre contar com o Império para nos governar outra vez, agora já não será o Romano, mas o que passa por Bruxelas, Berlim e acaba em Washington.
JSR

Sunday, March 6, 2011

28 - Exegese sobre “Hai Moũsai”

Portrait of a Scribe
 by Bartolomeo Passarotti
O blog das “Musas” associado a este, começou discretamente, provocando só alguns e-mails de simpatia de vez em quando. Ultimamente, porém, tem sido objecto de mensagens mais frequentes com comentários interessantes, críticos, algumas vezes provocantes e ocasionalmente com análises exegéticas.
Um comentário frequente é a “coragem” de ter, manter, revelar, um blog de poemas... Se é que a esses textos se pode chamar poemas. Através das palavras amáveis, reconhece-se ainda a prevenção contra a etiqueta de sonhador que pode ser colada a quem o faz e portanto prejudicial a uma reputação de seriedade. Pois, apesar do nosso admirável mundo novo ser feito de criatividade em tudo, na ciência, na tecnologia, na economia, na comunicação, resta que no subconsciente colectivo a seriedade está ainda ligada a uma certa arrogância ou presunção, à falta de humor, em resumo a uma personalidade intensamente chata...
Na realidade, ter a capacidade de escrever um poema ocasional, é o equivalente a tomar uma nota rápida dum acontecimento, concentrado com as emoções e reflexões correspondentes, um código na cápsula do tempo, uma história em meia dúzia de linhas. Serve também como auto-análise, eficaz, barata e sem risco de indiscrições...
Outro comentário, o facto dos poemas serem escritos em várias línguas. A surpresa só pode ser relativa, pois o anonimato também relativo dos blogues permite contudo perceber o multi-culturalismo do autor, ao qual corresponde naturalmente uma pluralidade de idiomas. No blog das musas vão aparecendo aqueles que se manifestam espontaneamente, embora a forma tenha por vezes outras influências.
Mas foi “The Bearings of Home” que rebentou com a escala para os leitores de língua não inglesa. Primeiro, exigiram uma tradução do título, foram ver “bearings” ao dicionário e ficaram confusos com a tradução literal: “rolamentos”. Os rolamentos de casa?!... Bem, há outros significados, como orientação, rumo, fazer o ponto. Mas depois do título, havia ainda demasiadas perguntas para responder. Mais simples, embora com relutância, “cometer” uma tradução completa. Mais simples?
Cada idioma tem as suas linhas de evolução do pensamento, o seu ritmo, a sua lógica. Traduzir é sempre uma traição, pior ainda se for cometida pelo próprio. Mesmo os idiomas que se aprendeu em criança, nos quais se pensa e se sonha, vivem em compartimentos separados do cérebro. Exactamente como convivem as competências profissionais e a apreciação ou a prática das artes.
As línguas comunicam entre si, mas numa correspondência ocasional e imperfeita, que pode ser frustrante quando se tenta transferir uma expressão duma língua para outra. Por exemplo: em “the sounds of winds hurling through the coastal mountains”, como traduzir “hurling” que significa “atirar” geralmente com ruído? Em comparação, "Wuthering Heights" de Emily Brontë (wuthering, onomatopeia do vento que faz wuuuu...) foi traduzido em francês por "Les Hauts de Hurlevent" (hurlevent, o vento que grita), mas em português deu "O Monte dos Vendavais". Nada corresponde exactamente.
As reacções à tradução foram a única parte agradável, mesmo motivante: sugestões de melhores expressões e termos mais apropriados para preservar o tom e o ritmo. Nesta exegese detecta-se uma profundidade e complexidade do pensamento que passaram despercebidas no original, mesmo a quem o escreveu. As ideias e as palavras fluem naturalmente, fruto de uma maturação anterior, nem sempre totalmente consciente. Ao tentar traduzir, “home” pode não ser nem casa nem lar, “bereft” não é só uma falta, “far-fetched” é uma improbabilidade absurda.
O quadro descrito por uma tradução é sempre uma cópia pálida do mundo vivo evocado pelo original. Mas a cooperação na tradução pode trazer a excitação duma investigação policial: que ideias subversivas estará este sujeito realmente a transmitir? Para quem queira realmente saber, um poema é sempre uma tentativa de resposta à pergunta recorrente sobre a razão de existir.
JSR

Wednesday, March 2, 2011

27 - Chegam em Vagas

Gothic Manuscript, The Siege of Constantinople 
by the Turks in 1453 - Guillaume Adam
Vindas da margem sul do mar mediterrâneo, aumentam as vagas de refugiados que chegam aos países da margem norte. Empurrados pela fome (o aumento inexorável do preço dos alimentos), pela falta de trabalho (uma natalidade explosiva que atropela qualquer progresso económico), pelos conflitos (tribais, étnicos, sectários), pela opressão (religiosa, militar, politica), pelo desespero. Morrem muitos pelo caminho, chegam ainda demasiados para quem os recebe.
Em pleno debate sobre as consequências da imigração, em 1973 foi publicado em França “Le Camp des Saints” de Jean Raspail, antecipando a chegada maciça de velhos navios carregados de refugiados esfomeados vindos dos países pobres do mundo. Em 1990, Michel Rocard era primeiro-ministro e reconhecia que “la France ne peut pas accueillir toute la misère du monde”. Não era profético, era previsível, não só para a França mas para toda a Europa.
O continente europeu conheceu vagas sucessivas de invasores, antes e depois da história escrita. Chegavam em pequenos grupos, tribos ou povos, pacificamente ou em guerras de invasão, vieram do sul, do leste e mesmo do norte. Empurrados por inimigos, pela fome, pelo desejo duma vida melhor. Como agora.
Vaga após vaga, a civilização existente acabava por ser destruída e uma longa noite de barbárie caía sobre o continente. Até se organizar um mundo diferente. Os europeus são descendentes de todas as migrações e todas as invasões. Contudo, por muito desagradável que possa ser a crise que atravessa hoje a Europa, é preciso ter noção do grau de evolução atingido pela civilização actual e que está em risco de se perder devido à ignorância dos povos e à estupidez dos governos. Os europeus não se reproduzem, precisam de imigração, mas não precisam de mais comunidades inassimiláveis que atrasem o processo de união, nem se podem esquecer que os mecanismos de protecção social de vários estados estão em ruptura financeira.
Define-se inteligência como a capacidade de aprender com a experiência, uma capacidade mal distribuída e uma aprendizagem por vezes demasiado lenta. Como dizia Churchill da América, as democracias podem eventualmente tomar decisões inteligentes... mas depois de terem experimentado todas as outras. Serão as democracias europeias finalmente capazes de agir de acordo  com as lições da história?
JSR

Monday, February 28, 2011

26 - As Boas Práticas

Compagnons du Tour de France - 1820
Para atingir um objectivo, seja montar um projecto ou escalar uma montanha, deve-se assegurar tanto o planeamento como o bom acabamento de cada etapa. Por exemplo, ir escrevendo relatórios de avaliação do progresso no primeiro caso, ou ir cravando grampos para prender a corda no segundo. São apenas boas práticas, mas são elas que separam os profissionais dos amadores, os que são consistentemente bem sucedidos dos que só chegam ao destino por acaso.
A importância das boas práticas na prosperidade dum país é um assunto pouco frequente tratado, seja na análise sociológica, seja na análise económica. Como para muitas outras coisas, analisam-se as consequências, ignoram-se as causas.
Começando pelo princípio, a formação de cada indivíduo deve fornecer as boas práticas de relacionamento com os outros, válidas para as interacções entre pessoas, entre empresas e entre nações. A educação em casa, a instrução na escola, as regras da sociedade, a diplomacia entre as nações.
Quando se comparam as boas práticas usadas nos países desenvolvidos com as dos outros, encontram-se as pequenas e grandes diferenças que estão na origem do sucesso de pessoas, empresas e dos próprios países: saber preparar-se, escolher o melhor percurso, falar com as pessoas certas e como as interpelar, chegar a horas e cumprir prazos, expor ideias de forma clara, saber quando falar e quando ouvir, antecipar as perguntas mais prováveis e escolher a altura certa para concluir.
Saber manter os contactos institucionais e os contactos com as pessoas. Enviar cartas de agradecimentos, de resumo dos pontos discutidos, das decisões tomadas, das acções a fazer e dos seus prazos. Cumprir a sua parte do trabalho de execução e dos acordos. Exigir o mesmo dos outros. 
         Finalmente, saber quando perseverar e quando mudar de caminho.
JSR

Thursday, February 24, 2011

25 - Brasigola

Printing Press
No sítio onde costumava estar Portugal encontra-se já Brasigola, uma entidade entalada entre uma invasão populacional vinda do Brasil (e não só) dum lado e uma compra económica por parte de Angola (e não só), do outro. Um pais metido numa prensa, com muitas mãos a dar à manivela.
Do lado populacional, uma volta por Cascais à hora do almoço é instrutiva.
No restaurante os empregados são brasileiros e na mesa do lado uns portugueses discutem  turismo com um inglês e um alemão que obviamente aprenderam a língua do Brasil.
Nos Correios, umas raparigas brasileiras esperam vez para mandarem dinheiro para casa, pedem ajuda para preencher a papelada e aproveitam para ir informando que podem ser muito carinhosas a agradecer...
No centro comercial, os rapazes da lavagem de automóveis são brasileiros, as empregadas das lojas são brasileiras, as pessoas que passam conversam com a pronúncia do Brasil, assim como a mulher de meia idade que fala com a caixa Multibanco, dizendo que tem lá dinheiro e não compreende porque o boneco não a deixa fazer um levantamento.
Do lado económico a invasão é discreta, a maior parte do tempo, mas não deixa de se avolumar progressivamente.
Nas reuniões de conselhos de administração de bancos e outras empresas, para além das múltiplas crises, discute-se como sobreviver em Angola e com os angolanos. Quem lá está, quer lá continuar, ou quer lá entrar, tem que pagar a “protecção” local. As formas de pagamento variam, os beneficiários são sempre os mesmos.
Participação no capital em troca de terreno de origem desconhecida para implantação, por associação com empresas que só existem no papel, por nomeação de administradores que só recebem ordenado, ou qualquer outra forma de cobrança. Porque sim, porque decide quem pode e sem decisão não há negócio.
Os benefícios da venda dos recursos naturais fluem também para os mesmos bolsos, por vezes por caminhos ainda mais directos. O que não é gasto em esbanjamento é investido na compra de participações em empresas estrangeiras, de preferência portuguesas, cada vez menos propriedade de portugueses, públicas e privadas, de todos os ramos. Note-se a progressiva mansidão dos... como lhes chamam agora? Ah, órgãos de comunicação social...
Filipe II de Espanha costumava dizer que tinha herdado, comprado e conquistado Portugal. Agora que o país está a ser comprado e conquistado, parece estranho (e ao mesmo tempo promissor) não haver falta de partidos políticos que o queiram herdar...
Claro que tudo isto é um exagero, como hipérbole e em outros sentidos do termo, a misantropia passageira dum dia em que o ataque de spleen é pior do que em muitos outros. 
JSR

Saturday, February 12, 2011

24 - Egypt - Smoke and Shadows

Kebash Road - Karnak
Could Egypt become the first-ever, Arab democracy?
The parties are winding down in Cairo and Alexandria, and soon will be over. Besides the symbolic resignation of its leader, the armed forces are still in power, as they were since the fall of the sultanate.
Give the people smoke and shadows: instead of the British-supported Sultans, give them military-appointed Pharaohs, to love first and hate later. Nasser, Sadat, Mubarak, figureheads change, the real power remains in the same hands. Give the people a whistle to blow, let them dance on the streets and they will eventually go home.
What to expect this time? Nasser nationalized the Suez Canal, Sadat made peace with Israel and Mubarak protected foreign investment and tourism. All of them entrenched a privileged military caste, lined their own and their cronies pockets, wrested external help, mostly economic. The military will now oversee the "transition"...
The fire of the demand for people empowerment is spreading throughout the region. Two much smoke and some shadows haunting the remembrance of Iran-like unqualified disasters, local wars, terrorism, religious extremists, betrayed promises. After the appearance of victory, starts now the real effort to actually move forward some political, social and economic improvements. “Allah Akbar” is not a government program.
The Arab autocrats and dictators (with a couple of minor exceptions) do not have the minimum saving grace of some other authoritarian regimes, who used their powers to reform the society and fight the most egregious forces of retardation.
Ataturk’s "young Turks" reined in the religious harmful superstitions keeping the people ignorant and the women oppressed. The Chinese stopped the population explosion with the one-child policy, without which there was no hope of ever feeding everybody and improving the economy.
Alas, democracy is not the end of the road to social progress and fairness. Both China and India are extreme examples of one an authoritarian regime and the other a democracy: each of them equally ridded with corruption, a growing chasm between the privileged few and the starving, slave-like majority. Real democracy takes time, and education, and work, and justice. Real democracy is always born in pain.
Most of the world, notoriously the Arab family of nations (as well as their neighboring Asian and African ones, led by committees, stooges or chieftains), still live with a medieval mindset: patriarchal, tribal, theocratic, aristocratic, mafia-like, chose the name, the functioning is the same: the few living out of the work of the many, using the forces of weapons, ideology or religion, to coerce people to comply with extortion practices.
The spoils of power take many forms: raiding directly the national Treasury, selling the country's natural resources for private profit, controlling the economy, requiring local and useless sponsors for foreign investment (or partners who share the profits without real work or actual capital), demanding bribes for every administrative or bureaucratic procedure. All this is done proportionally to power, rank, connections, as well as prodding or disruptive capacities.
Real democracy is not likely to happen yet there, but hope springs eternal.
On the other hand, doesn’t at least some of the above sound somewhat familiar to our own, "developed" countries?
JSR

Sunday, February 6, 2011

23 - Entre Cila e Caribdis

Scylla and Charybdis
O "FMI já não vem” titulava ontem o “Expresso”, como eco ao alívio manifestado pelo governo depois de ter capitulado diante das novas condições para ter acesso ao FEEF. Depois do Banco Central Europeu, um governo económico europeu. Já não é sem tempo e significa mais um passo para o governo federal, sem o qual a União Europeia não faz sentido nem pode sobreviver.
Portugal encontra-se neste momento entre o FMI e o FEEF (o Fundo Monetário Internacional e o Fundo Europeu de Estabilização Financeira).  
“Scyllam atque Charybdim Inter” disse Virgílio na Eneida, referindo-se aos dois monstros mitológicos que guardavam um estreito pelo qual tinham que passar os navegantes. Evitar ser devorado por um, significava ser inevitavelmente engolido pelo outro e vice versa. Parece que o governo português escolheu qual dos dois “monstros” prefere, escolha que é perfeitamente compreensível. Infelizmente, isso não impede necessariamente que venha também a ser apanhado pelo outro, como já aconteceu à Grécia e à Irlanda. Além do mais, as condições de austeridade impostas pelos dois são equivalentes.
Não é só na parte mais ocidental da Ibéria que havia um povo que não se governava nem se deixava governar, como escreveu um general romano há cerca de dois mil anos. Nesta altura da história, quase todos os descendentes dos romanos e romanizados, assim como os descendentes dos heróis da Eneida, precisam de ser salvos dos excessos dos seus próprios governos. São os antigos bárbaros do norte da Europa que, com menos erudição e mais racionalismo, ditam as regras de governo que todos os países do Euro vão ter que cumprir…
JSR 

Friday, February 4, 2011

22 - O que é o FMI ?

IMF - 19th Street
Published 17/2/2011 by "Jornal do Fundão". 

O que é o FMI? Porque tem a sua sede na capital Americana? Porque é preciso pedir a ajuda do FMI para resolver problemas europeus?
Estas perguntas têm sido tão repetidas que merecem uma resposta simples e concisa: o FMI é uma cooperativa mundial de estados, com o objectivo principal de promover a estabilidade financeira e monetária, assim como um crescimento económico sustentável; está em Washington porque os Estados Unidos têm a quota maior; recorre-se ao dinheiro do fundo quando se precisa, porque é para isso que se é membro e se pagam quotas numa cooperativa financeira.
Em Washington, no “Federal Triangle” e arredores, encontram-se os edifícios da administração federal, assim como a Casa Branca e o Capitólio. Estão aí também organizações internacionais como o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Mundial (Banco de Reconstrução e Desenvolvimento) e outras. As razões desta proximidade obrigam a recordar o papel preponderante dos Estados Unidos nas relações politicas e económicas entre os estados desde o fim da última guerra mundial.
No fim da guerra, os Estados Unidos eram o único pais com uma grande economia dinâmica e em crescimento, embora distorcida devido ao esforço de guerra. Mas estava em risco de colapso por várias razões. Uma delas era a necessidade de criar emprego para os desmobilizados, pois as mulheres que os tinham substituído como força produtiva tinham-se habituado à sua autonomia e não estavam dispostas a voltar sossegadamente para casa. Outra era a reconversão da máquina produtiva para uma economia de tempo de paz. A economia necessitava de mais clientes e com maior capacidade de compra no mercado interno, assim como mercados externos com maior capacidade para absorver as exportações americanas.
Daí a conferência de Bretton Woods em 1944, onde foram definidas regras de cooperação económica, de reconstrução e desenvolvimento e a abertura das fronteiras ao comércio mundial através da redução negociada das tarifas de importação. Foram então criadas as instituições necessárias para regular a implementação e funcionamento desses acordos, o FMI, o Banco Mundial e o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade). 
O âmbito de responsabilidades destas instituições evoluiu com o tempo e as necessidades. As "Bretton Woods' sisters", o Fundo e o Banco, completam-se e por vezes cobriram as mesmas áreas para financiarem o desenvolvimento. Deram também origem a lendas conspirativas baseadas em pequenos factos reais, como o túnel que liga os edifícios originais por debaixo da 19ª rua. O túnel existe e é mesmo muito útil num clima de extremos, liga os parques de estacionamento e permite atravessar a rua sem derreter com o calor ou gelar com o frio, ou escorregar no gelo, ou atravessar manifestações ocasionais de lunáticos crédulos e mal informados... Por outro lado, o GATT transformou-se na WTO/OMC (Organização Mundial do Comércio).
Juntamente com o Plano Marshall e a criação da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económicos) as medidas tomadas em Bretton Woods permitiram a recuperação rápida da Europa, um longo período de paz e prosperidade, além de lançarem as bases da cooperação económica entre os países que continuou pelos acordos comunitários e o estabelecimento duma união europeia tendencialmente federal.
JSR
Nota: Ver links no comentário abaixo.

Tuesday, February 1, 2011

21 - Portugal e o FMI

Nos últimos dias tem-se acelerado a campanha de relações públicas para fazer aceitar o facto que Portugal tem de recorrer ao FMI.
Apesar dos esforços do governo, numa campanha de contactos internacionais para aliviar a asfixia dos juros impostos pelos mercados para comprar a dívida pública, o alívio é só temporário. O país empenhou-se demasiado e embora continue a ser capaz de ir pagando as suas dívidas, os juros são demasiado altos para permitir o desenvolvimento económico indispensável.
A objectividade, assim como um certo chauvinismo nacional compreensível, obriga a mencionar que Portugal tem sido o último baluarte defensivo da Espanha. Agora, as opiniões dividem-se, não tanto sobre a necessidade de ir ou não ao FMI, mas sobre as vantagens e desvantagens de ir primeiro ou esperar e ir juntamente com a Espanha. Para complicar a decisão, as mesmas questões põem-se em relação ao Fundo Europeu. Na verdade, as políticas e as decisões dos dois países, vizinhos e interdependentes, devem ser permanentemente coordenadas.
Na sociedade europeia actual, Portugal é um pais de classe média baixa que vive acima dos seus meios. Tecnicamente não está falido porque vai conseguindo créditos novos para pagar as dívidas antigas, embora cada vez com mais dificuldade e com juros cada vez mais altos. Como não consegue cortar o suficiente nas despesas correntes, não lhe sobra grande coisa para reduzir a sua dependência do crédito, quanto mais para amealhar e para investir. Vale a pena manter esta situação sem perspectivas para o futuro? Mais tarde ou mais cedo chegará o ponto de ruptura. 
A escolha neste momento é efectivamente entre ir administrando umas mèzinhas homeopáticas ao doente, na esperança que a diminuição temporária dos sintomas dê uma aparência de cura, ou atacar o mal de frente duma forma mais dolorosa, mas mais rápida e eficaz. É aqui que entram em consideração os instrumentos europeus e o FMI.
Para que serve pertencer a uma cooperativa de ajuda económica e financeira se não usarmos os mecanismos disponíveis quando se precisa? Porque se tem medo das medidas necessárias para sair da crise? Porque têm um preço em termos de credibilidade junto dos mercados? Qual credibilidade? E que interessa aos mercados que se obrigue os cidadãos a apertar o cinto se não houver medidas para aumentar a prosperidade económica e consequentemente a capacidade de reembolsar os créditos? Os mercados, tal como os Bancos em relação aos seus clientes, aumentam os juros que pedem para emprestar aos mais pobres, porque o risco de insolvência é maior, e deixam de emprestar a quem não tem perspectivas de aumento de rendimentos.
Não se estabelece uma politica económica, nem mesmo financeira, para satisfazer os mercados. A redução das despesas faz sentido para corrigir excessos em relação ao rendimento disponível. Mas se não for acompanhada de medidas que permitam, e se possível favoreçam, o crescimento económico, não acrescentam credibilidade nenhuma junto dos mercados da dívida. Os analistas financeiros compreendem perfeitamente que a construção assenta em areia, portanto instável e frágil, que o rolar da dívida atinge juros que acabarão por tornar impossível o seu pagamento.
Nestas circunstancias, que fazer? Negociar rapidamente e duramente um pacote de ajudas financeiras contra medidas de saneamento económico. Rapidamente, enquanto ainda se tem, realmente ou apenas como argumento negocial, alguma latitude de negociação, algum tempo de sobrevivência de crédito. Duramente, para poder escolher as medidas a tomar, assim como o grau e progressividade da sua implementação. 
E quais as medidas? Tem havido estudos sérios, feitos por portugueses assim como pelo Fundo e pela OCDE. Tem havido sugestões politicamente aceitáveis assim como propostas de medidas populistas e disparatadas. Tem havido naturalmente para todos os gostos. É preciso escolher, com “um olho na carteira e o outro na saúde do doente”, como tudo na vida.
É para isso que se escolhem governantes, de preferência competentes.
JSR  

Sunday, January 30, 2011

20 - The Middle Ages of the Middle East

"Like Beads of a Tesbih"
Lebanon, with the takeover by a terrorist party, Tunisia, with the fall of an authoritarian regime, Egypt, with demonstrations derailing, those are just the latest Arab countries’ convulsions to fill the news. Others will follow. The American and European governments walk the razor sharp path between supporting popular aspirations and propping up unreliable allies. Helpless politics complicated by clashes of cultures, medieval versus modern mindsets, runaway demographics and survival in a global economy.
The idle males of all ages, loitering, milling around streets and squares: boys, youngsters, grown men, old men, beggars, street vendors of all stripes. Women just pass by, most of them bundled up, veiled or scarfed. This is the usual human scenery of a Middle East city, a view that strikes every visitor from developed countries. A population explosion as a result of relatively better availability of food and health care, contrasted by a continued lack of proper education. No economic development can ever catch up with such a galloping increase of population and so little improvement of skills.
Like beads of a tesbih, several nations of the Middle East and Africa are falling one after the other into chaos, war and desperation. Not a big fall from their previous authoritarian regimes, skewed economies towards ruling classes corrupted and retarded, a few privileged lording over populations shackled, poor and ignorant. These countries’ travails have unfolded faster since the last world war’s redrawing of borders. Not that the situation before was any better.
In Europe, the Middle Ages were a period haunted by the forces of darkness, the same forces still at work in the Middle East: tribalism, sectarian disputes, superstitious beliefs capturing the minds. In the Middle East, still crossing their Middles Ages period, add to this a resistance to modernity, cultural complexes of inferiority towards “the West” and a plethora of extremist groups supported by rival factions, but poorly controlled by them.
What we see now in the news is neither the beginning nor the end. It will be pursued in the Maghreb and impact the whole of the Arab world. Unfortunately, democracy and development are not granted for tomorrow, the educated middle classes are minorities easily outvoted by the masses of the poor, who may fall prey to the religious and fanatic. The situation can get worse before it will, hopefully and in the fullness of time, get better.      
Meanwhile, the European countries may well anticipate an increase of refugees, which will boost the problems of the existing and restive communities already there, to an unbearable extent.
JSR

Tuesday, January 18, 2011

19 - A Emancipação Artística da América (America’s Artistic Coming of Age)

"Nighthawks" by Edward Hopper
Entre as exposições actualmente no Museu Whitney em Nova York, encontra-se uma particularmente interessante, por testemunhar uma parte do movimento de emancipação artística da América. Uma retrospectiva de Edward Hopper e do seu tempo.
Nos princípios do século 20, os cânones artísticos da América seguiam ainda os modelos europeus. A sociedade endinheirada e os críticos de arte que a serviam, desencorajavam todas as veleidades inovadoras dos jovens artistas inconformados.
Apareceu então Gertrude Vanderbilt Whitney, que fez a ponte entre a burguesia dominante de onde provinha e o grupo de artistas a que pertencia como escultora. Criou um clube que foi o precursor do actual museu e coleccionou uma grande quantidade das obras que constituem ainda hoje a maior parte do seu património.
Esses artistas tiveram o mérito de se dedicar a temas da vida e das paisagens americanas suas contemporâneas, tratadas com as novas técnicas de então, ignorando os cânones do establishment. Retrataram cenas da expansão industrial e da agricultura, da vida nas cidades e no campo, a intimidade das pessoas e a enormidade das máquinas, as transformações e as convulsões do crescimento dum país feito de gentes vindas de todo o mundo. O contraste entre as paisagens da natureza original do continente e o “skyline” das estruturas descomunais feitas pelo homem, como a linha do horizonte com os arranha-céus das grandes cidades.
"Gertrude Vanderbilt Whitney" by Robert Henri
Daí nasceram obras maiores como “Nighthawks” de Edward Hopper e também obras menores como o retrato de própria Gertrude por Robert Henri, “reclinada e de calças”. Conta-se que o marido da retratada nunca permitiu que o quadro fosse pendurado numa parede da sua casa, não queria que os amigos vissem a sua mulher “naqueles preparos”...
Os preconceitos não conhecem fronteiras, variam com a cultura e o tempo, mas fazem parte do lastro obscuro da natureza humana.
JSR 

Saturday, January 15, 2011

18 - A Importância do Voto e de Quem Vota

"The Guardian" by Shannon Rankin
Published 20/1/2011 by "Jornal do Fundão". 
The site "http://cavacosilva.pt/" established a link to this post.

Numa verdadeira democracia não há eleições ganhas de avanço nem há eleições sem importância. O voto é necessário para separar o trigo do joio, entre os candidatos e, nem sempre se dá a isso a devida importância, entre os eleitores.
Um cidadão que pensa tem opiniões e, quaisquer que elas sejam, é preciso exprimi-las das formas previstas pela comunidade de que se faz parte e nas alturas próprias. Os deveres de cidadania impõem participar na escolha daqueles que nos representam e na gestão do património comum.  
Para os outros, os desinteressados, os amorfos, os que são a carga mais ou menos inútil que a sociedade carrega por solidariedade, é natural que se abstenham, estão apenas a ser consequentes com a sua alienação. Por isso é que o voto não é obrigatório.
Em Portugal, eleger o Presidente da República tem uma importância diferente das eleições legislativas. A constituição dá maior representatividade ao Presidente, como Chefe do Estado, mas atribui a responsabilidade de governar ao partido que ganha as legislativas.
Se a personalidade e os poderes do Presidente devem ser moderadores e podem ser ocasionalmente decisivos no âmbito nacional, têm sempre a maior importância nas relações internacionais. No tempo das monarquias, essa importância traduzia-se nas alianças formadas pelos laços do casamento e do parentesco, que facilitavam a comunicação e os entendimentos, embora não impedissem as guerras quando os interesses dos estados fossem opostos.
No nosso tempo, as afinidades e a empatia substituíram os laços familiares e podem facilitar as relações, embora os interesses continuem a ser primordiais. Em períodos difíceis de conflitos de interesses entre os estados, ou entre um estado e os seus credores, transmitir uma imagem de confiança e de estabilidade pode fazer toda a diferença para os interesses nacionais.
As perguntas principais que os portugueses se devem fazer para estas eleições presidenciais são:
Quem representa melhor a nação que nós somos? Que imagem queremos projectar para o exterior? Quem pode coalescer a credibilidade e o respeito que consideramos nos ser devido e de que tanto precisamos neste período de crise?
Como todos os países, somos compostos por todo o tipo de gente, uns mais inteligentes, experimentados, honestos e apresentáveis do que outros. Mas quando saímos em sociedade, e neste caso trata-se da sociedade das nações, queremos mostrar o aspecto mais favorável. Quando  as circunstâncias assim o exigem ou quando queremos atingir um objectivo, como por exemplo apresentar-nos a um exame ou ser bem sucedidos numa entrevista para um emprego, convém conhecer a matéria e transmitir sentido de responsabilidade.
Com todo o respeito que merecem como cidadãos todos os candidatos presidenciais, francamente há grandes diferenças nos seus méritos em relação aos factores que devem constituir a base duma escolha acertada.
Os eleitores imersos na realidade nacional podem ter filiações partidárias, sentir afinidades ideológicas, sofrer de alergias temperamentais, sentir-se indignados com situações específicas ou discordar de posições politicas, mas devem fazer uma escolha em consciência e exprimi-la pelo voto. Para quem observa de fora, o resultado desta eleição vai dizer mais sobre a essência do pais do que capelas inteiras de políticos, analistas, economistas, financeiros, investidores e avaliadores das agencias de rating.
Na hora da verdade diante do boletim de voto saberemos escolher o realismo dos factos como eles são, ou preferimos a fuga poética para um reino de fantasia?  Saberemos escolher a austeridade do trabalho honesto, ou somos tão ingénuos que seguimos para o abismo os tocadores de flauta debitando utopias ideológicas? Saberemos reconhecer a experiência ou preferimos arriscar na emoção crítica e na aventura?
Que país queremos que os outros vejam em nós? Que país somos realmente? Que país merecemos?
JSR

Friday, January 7, 2011

17 - Inside Job

"Webs" by Shannon Rankin
Assistir ao documentário de que toda a gente tem falado, finalmente e em Nova York. Ver desfilar no écran uma porção de pessoas conhecidas de longe ou de perto, assim como vários antigos colegas. Sair da sala e encontrar-se rodeado das instituições mencionadas e dos lugares descritos ou entrevistos nas imagens. Quais são as sensações? Desconforto, irritação, náusea.
Desconforto, porque se trata dum bom trabalho de investigação de factos recentes e das suas consequências. Mantendo o carácter multicultural do documentário, pode-se dizer ironicamente que... teve uma montagem orientada e com agenda, “cousus de fil blanc”; que é fácil ver os erros cometidos depois de acontecerem, como “a Monday-morning quarterback”; que os responsáveis de certos países mostraram uma “schadenfreude” de que em breve se irão arrepender. Além disso, para tornar as situações descritas compreensíveis para a maioria dos espectadores, foi preciso recorrer a uma simplificação excessiva, que pinta os personagens a preto e branco, os bons e os maus. Alguns são realmente como os pintam, mas a maioria dos que são apresentados como completos idiotas, tiveram as suas declarações obviamente editadas, truncadas e provavelmente nem sempre foram citados em contexto. Infelizmente, alguns dos principais actores destes acontecimentos recusaram participar no documentário. Os seus pontos de vista e justificações, que entretanto apareceram noutros meios de comunicação, teriam contribuído grandemente para esclarecer situações e decisões que assim parecem incompreensíveis.
Irritação, porque vários profissionais, alguns em lugares de grande responsabilidade, começaram a alertar a tempo acerca dos perigos iminentes e não foram escutados por quem tinha a obrigação de estar atento e tomar medidas para evitar estes desastres. Ou melhor, esta cadeia de desastres. Porquê? Porque efectivamente existe uma teia de interesses incestuosos entre universidades, instituições financeiras públicas e privadas, reguladores federais e estatais, Bancos e outras empresas, lobbies e legisladores, contribuições para campanhas e poder politico. A igualdade diante da lei é um mito. Um mito necessário e útil, como outros mitos, para manter a crença na comunidade de interesses e na solidariedade social. Mesmo em democracia, embora este seja o único regime politico que, além de declarar essa igualdade como um objectivo, se esforça realmente por o alcançar. Mas que só o consegue de forma muito relativa.
Náusea, porque após a aparente surpresa e o susto real, não se consegue mudar grande coisa em termos de regulação. Depois dos desastres reais das falências de estados e instituições, do afundar das bolsas de valores, da perda das economias aí investidas, da ruína de empresas e famílias, do aumento do desemprego, das perdas dos fundos de pensões que não conseguem pagar as reformas previstas... houve uma avalanche de medidas propostas para aumentar os controles e evitar repetições. Mas essas medidas não foram aprovadas, ou só foram aprovadas parcialmente, pelos legisladores. Com o sentimento de injustiça sentido por todas as vítimas e pela maioria dos cidadãos votantes, como é isso possível? Em vez de medidas eficazes, como de costume foram encontrados alguns bodes expiatórios, os mais dispensáveis, os menos protegidos pela teia de interesses que constitui todas as oligarquias, de todos os países, de todos os regimes.
Conclusões? Algumas. Os sistemas político, económico e financeiro, assim como as nomenklaturas que os alimentam e dos quais se alimentam em prioridade, tornaram-se indispensáveis. Os governos têm que ir buscar os seus ministros e conselheiros ao mesmo grupo de gente que estabelece as teorias, ensina os modelos, implementa os paradigmas, faz a prosperidade e ocasionalmente comete as asneiras, corrige os erros mais abstrusos e... assegura a permanência do sistema geral de funcionamento dos estados. Há alternativas? Há, mas todas as que já foram experimentadas deram resultados piores, por vezes monstruosamente piores. 
JSR 

Monday, January 3, 2011

16 - O Réveillon e a Realidade

New York Glitz
Published 6/1/2011 by "Jornal do Fundão"

Passar a noite do fim do ano em Nova York com um grupo representativo daqueles que fazem “os mercados” é, para quem chega de Portugal (e mesmo que isso seja voltar ao que foi a vida normal durante muito tempo), um reencontro brutal com a realidade. Encontrar no mesmo lugar gente dos fundos de gestão, de bancos de investimento, de grupos de investidores independentes e “venture capitalists”, é uma oportunidade de auscultar o coração financeiro da América e, por extensão sem exagero, do mundo.
Com crise ou sem crise, os detentores de capital têm que investir o seu dinheiro para o fazer frutificar. Quem pára, morre. Os analistas e decisores das instituições financeiras e dos fundos de investimento, assim como os seus lacaios nas agencias de avaliação de risco, fazem a chuva e o bom tempo de quem precisa de emprestar e de quem precisa de pedir emprestado. Determinam-se assim os juros que recebem uns ou têm que pagar os outros, sejam estes últimos estados, bancos ou outras empresas, para se financiarem nos mercados de capitais. As avaliações das agências são neutras de outras considerações que não os interesses de quem lhes paga em relação ao rendimento oferecido, ao risco provável e ao seguro necessário para cobrir esse risco. O capital procura investimentos que assegurem o rendimento mais alto e as condições mais favoráveis. Onde quer que seja e, a prudência recomenda, no leque mais alargado possível de opções.
A presente crise tem múltiplas origens, desde a progressiva “deregulation” das actividades financeiras, ou seja, a diminuição dos controles impostos pelas leis dos estados, que por sua vez permitiram a multiplicação de instrumentos criativos que aumentaram exponencialmente os lucros dos intermediários em detrimento dos interesses dos clientes, até à ganância e desonestidade criminal. Há também uma componente cíclica de excessos incontrolados, devido à complacência e incompetência dos responsáveis das instituições públicas e privadas, que deveriam ter intervindo a tempo. Só alguns o fizeram e esses não foram ouvidos.
Está já em curso o retorno à “normalidade”, isto é, fica tudo mais ou mesmo na mesma. Há correcções dolorosas dos excessos cometidos, sejam balões especulativos que rebentam ou endividamentos imprevidentes que é preciso pagar com suor e lágrimas. Por vezes mesmo com sangue. Regista-se o desaparecimento de alguns dos participantes, as alianças de outros e a sobrevivência dos mais resistentes. Nada de particularmente assinalável para a plutocracia reinante. Porém, o mesmo não se pode dizer dos milhões que acreditaram nas publicidades do crédito fácil, dos investimentos miraculosos, do trabalho garantido, da reforma segura.
Aquilo que mudou realmente foram alguns dos paradigmas a que se habituou a geração que está agora a sair de cena. (Paradigma tem sido uma palavra muito em voga para definir um conjunto de parâmetros constituídos pelas teorias, pelos modelos, pelos métodos usados para tratar um certo assunto numa certa época; uma palavra muito em voga e geralmente mal usada e muito abusada). Esta mudança de paradigmas e a necessidade do render da guarda não é compreendido por muitos, nem aceite graciosamente por outros.
Das conversas bem humoradas e só aparentemente superficiais desta noite de entrada em 2011, vale a pena reter alguns pontos.
A pretendida crise do Euro é uma preocupação para os países que usam essa moeda, porque significa atraso na coordenação económica, financeira e fiscal duma União em progresso recalcitrante. Mas é de interesse muito limitado para o resto do mundo. Os investidores tomam as suas decisões de acordo com a realidade que existir a cada momento, seja no conjunto ou em cada um dos seus membros, seja ela qual for.
O mercado dos cérebros e das competências é cada vez mais global, sem estados de alma nem particular interesse em relação aos países de origem de cada um dos participantes. A referência à nacionalidade é uma curiosidade puramente social, motivo para mencionar memórias de férias ou piadas sobre as idiossincrasias dos dirigentes políticos do momento. A este respeito a mudança em relação à geração anterior é impressionante.
Na década de 1980, os estrangeiros, incluindo os portugueses, que povoavam Universidades, organizações internacionais, empresas multi-nacionais, os grandes grupos económicos e financeiros, mantinham ainda uma relação próxima com os seus países de origem. Voltavam regularmente a férias, muitos aproveitavam as oportunidades que se lhes ofereciam para ensinar, formar empresas e participar na vida politica do seu pais. De entre os portugueses, foram numerosos os ministros, secretários de estado, fundadores e administradores de Bancos e outras empresas, que voltaram ao pais. A experiência exterior e a passagem pela politica compunham um currículo que abria as portas a uma carreira de responsabilidades, de realização pessoal e de postos lucrativos. Eram poucos os que não queriam ou não podiam responder ao canto das sereias da volta à pátria.
Agora, muitos dos da nova geração consideram um possível retorno para trabalhar na sua terra como um falhanço profissional e pessoal, a possibilidade de aceitar um convite para uma participação politica como uma hipótese ridícula. Diminuiu a consideração que havia outrora pelos dirigentes políticos de relevo no círculo do poder, ou melhor, acham que houve uma mudança qualitativa e quantitativa. Enquanto que a geração anterior considerava a maioria dos políticos nas áreas técnicas como capazes, e os incompetentes eram a excepção, agora esta geração considera que a excepção é encontrar políticos competentes. Relatam histórias hilariantes de conversas com personalidades ligadas ao governo e à oposição, perguntam em que universo paralelo é que vivem e concluem que nem vale a pena dialogar sequer, que é uma perda de tempo. Com exagero, mas sem tristeza, sem pena, sem emoção. Resta esperar que continuem a voltar alguns, em número suficiente.
As nações-estados que fizeram a grandeza da Europa desde a Renascença, cuja competição cultural, económica e militar lhes deu uma vantagem decisiva em relação ao resto do mundo até recentemente, deixaram de ter interesse para os novos nómadas globais. As pequenas e médias nações fora da Europa ainda menos. Parece que só contam agora os mega-estados e as suas instituições, os grandes centros económicos e financeiros, as empresas multinacionais na ponta da inovação e da tecnologia, algumas organizações internacionais. A maioria dos contemporâneos mais qualificados desta geração estão espalhados pelo mundo de acordo com a evolução das suas carreiras. Esta tribo dispersa geograficamente, mas unida por múltiplos sistemas de comunicação permanente, por laços profissionais, por relações afectivas, pela competição e pelos interesses comuns, forma agora a sua própria comunidade global. Tudo o resto parece que vêem, cada vez mais e apenas, como paisagem.
JSR

Friday, December 31, 2010

15 - A Rapariga do Oeste

Puccini - La Fanciulla del West
O Met (Metropolitan Opera de New York) apresentou na antevéspera do Ano Novo a ópera de Puccini “La Fanciulla del West”, com Deborah Voigt, Marcello Giordani e Lucio Gallo, maestro Nicola Luisotti. Barbara Voigt, no papel de Minnie, é substituída nos dias 3 e 8 de Janeiro pela soprano portuguesa Elisabete Matos.
Uma ópera acerca do Far West, dos cowboys que largaram as manadas de vacas para a corrida ao ouro da Califórnia, da rapariga chamada Minnie que dirige um saloon e que cita a bíblia para convencer o xerife e os mineiros a não enforcarem o bandido que ama, é uma história diferente por se referir ao imaginário americano em vez de usar os librettos clássicos europeus. Mas não só. Nesta história não morre ninguém, tem um happy ending moralista, obrigação continuada depois nos filmes de Hollywood, incluindo os de um certo Disney e o seu casal de ratos, Mickey e Minnie.
Esta ópera teve a sua première espectacular no Met em 1910, supervisionada pelo próprio Puccini, com a orquestra conduzida por Toscanini, e com Enrico Caruso, Emmy Destinn e Pasquale Amato nos papéis principais. Depois disso, tem sido representada raramente e com grandes intervalos entre as produções. Mas sempre com grande sucesso critico e entusiasmo dos espectadores.
Vem a propósito mencionar o patrocínio das artes na América. Olhar para as paredes dos átrios ou ler o catálogo do Met, são compêndios de como a economia se torna instrumento de promoção social, quanto custa em doações ser chairman (ou chairwoman) do Board of Directors (US$30 milhões), co-chair e as diferentes categorias de directores (de 20 a 1 milhão), escritos com letras cada vez mais pequenas, de tamanho correspondente à contribuição, abaixo disso já não se consegue ler. Depois há todos os comités e as produções, tratados de forma semelhante e com doações adicionais. Todas as contribuições são bem vindas, evidentemente, angariadas com engenho e arte, deduzidas dos impostos, mas abaixo de um milhão desaparecem do radar do reconhecimento público...
Como se pode perceber através do angelismo natural num libretto de ópera, a América não é para os tímidos. Ainda hoje a maioria dos cidadãos que votam querem manter o espírito de fronteira, o direito a lutar por um lugar ao Sol, onde tudo é possível para quem conseguir sobreviver, mas quem falha, morre. O mais discretamente possível, please, para não incomodar o trabalho e o enjoyment dos outros. 
Sem outros comentários, sem comparações e sem julgamentos de valor. 
JSR

Tuesday, December 28, 2010

14 - As Tormentas e as Esperanças do Nosso Tempo

Georgetown on the Potomac
A percepção de todas as coisas muda com a perspectiva do observador. Visto de Washington, de Paris, de Lisboa ou de qualquer outro lugar, o mundo não só parece diferente, como é efectivamente diferente.
Nas lojas de souvenirs de Georgetown vendem um mapa do mundo como ele é supostamente visto pela classe politica americana dentro da “beltway”, a auto-estrada circular da capital. É suposto ser uma ironia, uma piada, mas esconde verdades incómodas. Nesse mapa, onde os Estados Unidos ocupam a quase totalidade do espaço, o Canada, o México e todo o resto das Américas aparecem como pequenos apêndices incómodos. Para Nascente, há uma fatia de mar com uns relevos no horizonte onde se destacam a Nordeste umas ilhotas chamadas Inglaterra, Alemanha, França e uma massa indiscriminada de Europa. Ainda mais longe uma espécie de nuvem negra, a Rússia que ainda não deixou de ser o império do mal. Mais para Sudeste, um relativamente grande estado de Israel, rodeado de poços de petróleo povoados por beduínos irritantes. No Sul, o pequeno buraco da África. Do lado Poente, uma fatia maior de mar com as ilhotas de Hawaii, do Japão e da China com uma linha de horizonte cheia de olhos em bico a espreitar. Um mapa que se pretende cómico, mas que é dissimuladamente instrutivo e mesmo preocupante em tempos de crise.
A crise da Europa (desenvolvimento económico e credibilidade orçamental), não é a mesma da América (onde a fábrica de fazer dólares transfere os custos do endividamento excessivo para fora das fronteiras), nem a dos países em desenvolvimento (que disfarçam as suas deficiências estruturais e sócio-económicas dando-lhes nomes criativos) ou a dos pseudo-estados onde as únicas coisas não virtuais são a guerra, a corrupção, a pobreza e a desesperança.
Os meios de comunicação actuais pretendem que o presente modelo de civilização está a chegar ao fim, que a democracia política e a economia liberal estão em decadência. Porém, basta ler uns livros de História para saber que cada época tens as suas crises e os seus desafios. Nunca são iguais, mas pode-se sempre aprender alguma coisa para tentar evitar cometer erros semelhantes. Sugerem também que é nas fronteiras distantes dos impérios que as mudanças aparecem com maior clareza e gravidade ou que é nos países periféricos que as resistências se esgotam primeiro.
Tal como a evolução da vida, as sociedades avançam por tentativas, há caminhos que acabam em becos sem saída, que recomeçam noutro lugar ou voltam a um ponto mais atrás. Tudo é composto de repetições, estagnação, recuos e avanços. De cada vez que a luz da civilização brilhou mais forte num local, todos os bárbaros se sentiram atraídos, acabaram por a invadir, a abafar, a fizer retroceder, até mais tarde voltar a brilhar de novo para um espaço maior e recomeçar o ciclo.
No presente, estamos para lá do ciclo da civilização eurocêntrica. A Europa espalhou pelo mundo a sua cultura, que de boa vontade ou relutantemente, foi assimilada até certo ponto. Hoje, todos os países têm um grupo social, geralmente a elite político-económica, que tem o mesmo modelo, digamos “ocidental”, como referência. Da mesma forma que no império romano existiam elites romanizadas com graus de cultura e qualidade de vida equivalentes, mas em percentagens muito diferentes segundo as regiões, assim acontece com os países actuais. Se nos países da Europa e nos estados da América do Norte a grande maioria da população vive de forma bastante igual, essas percentagens vão descendo com o grau de desenvolvimento de cada região, até níveis residuais nos países menos desenvolvidos, ou não existem efectivamente nos estados falhados.
         A comunidade internacional tem uma “civilização” comum, embora de origens culturais diferentes. Falam as mesmas línguas, têm as mesmas referências universitárias, lêem os mesmos livros, exprimem opiniões de forma semelhante sobre o estado do mundo, embora as convicções e pontos de vista possam ser diferentes. Tudo é uma questão de percentagem de gente com uma “civilização” comum, em cada região do mundo.
Esta crise vai passar, como todas as outras crises anteriores e as crises seguintes. No caminho, irá fazendo desaparecer progressivamente conceitos que se julga hoje indispensáveis, como os de equilíbrio geoestratégico, de equidade económica, de nação-estado. Mudando coisas que parecem pequenas mas que virão a revelar-se fundamentais no futuro, como a correlação cada vez maior entre saber e riqueza, entre ignorância e pobreza, numa linha de quebra cada vez mais larga e cada vez mais transversal a continentes e fronteiras. Mantendo aquilo que é consequência da natureza humana, como as superstições colectivas que cimentam as sociedades e mantêm os correspondentes antagonismos, assim como o apego à propriedade individual, sem a qual não há esforço para criar riqueza que possa depois ser parcialmente repartida. Tudo isto são consequências imparáveis da globalização.
Vista de Washington, a Europa é o único parceiro natural nesta evolução, com a mesma comunidade de objectivos e valores. Com diferenças por vezes irritantes, como a cacofonia nas organizações internacionais e os nacionalismos retrógrados na participação nos negócios do mundo. Com o conforto da familiaridade das qualidades e defeitos. As diferenças nacionais são exploradas sem remorsos para obter vantagens económicas, forçar decisões e estabelecer parcerias. Neste contexto, Portugal não é um pais importante, mas também não é um país insignificante, embora esta constatação, tal como transparece no tal mapa humorístico que se encontra em Georgetown, se aplique a muitos outros países. Todas as coisas são relativas e as crises também.
Cada tempo histórico tem as suas tormentas, todas as tormentas acabam por passar. O que parece agora importante é a responsabilidade das gerações presentes e o legado que irão deixar aos que virão a seguir. Mas todas as crises constroem as suas esperanças, a crise presente pode ser a provação que fortalece a integração europeia e o reconhecimento da interdependência global. A oportunidade de tomar as decisões certas no tempo possível, o aproveitar da ocasião que não voltará nos mesmos termos, são comuns aos grandes impérios e aos pequenos países, às colectividades como aos indivíduos. Do the right thing. Se cada um fizer o seu dever dentro das suas capacidades, o mundo em que vivemos poderá tornar-se melhor.  São estes os votos para o novo ano.
JSR

Sunday, December 26, 2010

13 - O Temporal (The Blizzard)

The House in Bethesda
Após o mau tempo na Europa, o mau tempo na América… “a blizzard looms for East Coast”.
No intervalo, a família dos dois lados do Atlântico conseguiu finalmente reunir-se em Bethesda (Washington) para o Natal.
Mas agora o Ano Novo em Nova York está sob aviso da meteorogia: “the storm bringing a rare white Christmas to the South will turn into a blizzard across the mid-Atlantic and New England, a nightmare awaits holiday travelers”.
Significativo, como uma tempestade de neve é considerada pelos ingleses como um “big freeze” e pelos americanos um “blizzard”. A diferença é mais do que semântica, é da própria natureza e também da cultura. No congelador dum lado, um temporal do outro.
Um oceano no meio.
JSR

Monday, December 20, 2010

12 - No Congelador (The Big Freeze)

The Big Freeze
Published 30/12/2010 by "Jornal do Fundão"

A Europa do Norte congelou no princípio das férias do Natal e a previsão meteorológica indica que não vai descongelar até ao fim do ano. Os ingleses chamam-lhe “the big freeze”. Os aeroportos encerraram, os comboios pararam e as estradas entupiram. Podem ser os ciclos normais do clima, pode ser o aquecimento global que extrema as variações sazonais, pode ser o planeta Terra a lembrar que a humanidade não é mais do que uma espécie de progressão bolorenta na casca duma maçã.  
Contam os mais velhos que antigamente era assim, o que quer que eles (e sobretudo elas, que vivem mais tempo) queiram dizer por “antigamente” e “assim”. Mas antigamente não havia milhões de pessoas a deslocarem-se para se reunir com as famílias nesta época do ano, pessoas encalhadas no percurso, exasperadas, por vezes irracionais. Quando nevava assim e tudo gelava, as pessoas ficavam em casa, com a família e na sua comunidade. Antigamente as pessoas não ficavam surpreendidas que ninguém mais se ocupasse delas, não ficavam desamparadas sem o “big brother” que tudo resolve, não ficavam dependentes da possível responsabilidade de outrem para as ajudar.
O rigor do Inverno sempre concentrou as atenções de todos, geração após geração, pois a selecção natural favorecia a sobrevivência dos previdentes, dos que em devido tempo semeavam, colhiam, amealhavam. Esses ultrapassavam os períodos de frio, as secas, e mesmo as longas viagens de exploração. Alguns dos descendentes desses sobreviventes degeneraram. Atiram-se ao caminho sem se prepararem, sem se informarem se as estradas estão transitáveis, se os comboios podem partir, se os voos estão confirmados. É evidente que alguns não têm escolha, mas à maioria falta-lhes discernimento. Depois queixam-se das consequências, algumas vezes com razão, muitas vezes sem ela.
Na Europa do Sul há outros problemas, mas pelo menos o clima é menos rigoroso. As cigarras vão sobrevivendo, mesmo que as formigas do Norte já estejam fartas de contribuir para as sustentar, o equilíbrio ecológico (e económico...) necessita da diversidade. Os aeroportos raramente fecham por causa do tempo, a natureza fez deles um melhor “hub” ou trampolim transcontinental, não faz sentido geográfico que um passageiro entre Lisboa e as Américas tenha que andar para trás para passar por Londres, Frankfurt ou Paris. Mas como é nestas cidades que se concentram a maioria dos passageiros e das actividades económicas, a geografia natural passa a segundo plano em relação à oferta de bilhetes das linha aéreas nos períodos mais procurados.
E assim vão os nómadas contemporâneos, dormindo no chão dos aeroportos, nas estações ferroviárias ou rodoviárias, nos automóveis ou em qualquer ponto do caminho. Comendo as últimas bolachas e bebendo a última garrafa de água, dos restaurantes e das máquinas de venda automática. Alguns mais informados ficaram nas suas casas, à espera de uma aberta que os deixe partir. Mas a migração não pára, no fim do caminho está a reunião com a família, a relva que é sempre mais verde do outro lado, a terra prometida.
Porque é o Solstício de Inverno, quando as horas de luz começam a aumentar em relação às horas das trevas, a memória ancestral faz renascer a esperança contra todas as evidências do mau tempo que faz. Porque, mesmo que não se consiga observar o eclipse da Lua, sabemos que a “Casta Diva” continua impávida acima das núvens. Porque podemos sempre ouvir a encantação da Callas na “Norma” de Bellini, para tornar os atrasos mais suportáveis. Porque faz parte da natureza humana nem sempre ser racional. Porque todos esperamos chegar a tempo ao destino.
JSR